quinta-feira, 26 de agosto de 2010



Peça e ferro da Idade do Ferro
ah, de quantas maneiras
eu já me ferrei
ao acreditar em palavras
cifras e emolumentos
ao desdenhar o óbvio que me demonstram
a Física, a Química e a Matemática
do ENEM.

ah, de quantas maneiras
eu me ferro
ao ser assediado
por sinônimos
pistas e sinais
que me enviam para lá
quando o que vale está ao lado.

ah, de quantas maneiras
eu ferraria
aquela boceta amada
que nada mais é do que
a parte príncipe
da mulher que é tudo.


26AGO10

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Sincronicidades - Raças


Já era a terceira vez que o pai, bruto, a empurrava. A cada vez parecia mais furioso. A menina conhecia a seqüência quando o pai bebia e tratou de sair antes que apanhasse..

Até da mãe ir embora, o pai conseguia ser carinhoso com ela e a irmã. Agora era isso: chegava do trabalho, às vezes já bêbado; começava a esbravejar e a xingar a mãe ausente; e depois era a vez delas – as agressões verbais primeiro, depois as físicas. Até que cansasse e caísse no sono, quase sempre no sofá.

Lá fora estava frio e ela estava com fome. Mas não voltaria para dentro antes do pai dormir. A irmã era maior de idade e conseguia salvar-se na casa do namorado. Mas ela ainda não – teria que esperar mesmo no frio.

A rotina de maus tratos levou a que ficasse mais e mais introvertida. No colégio passou a ter um rendimento sofrível. Uma professora mais sensível acabou por entender a razão da menina não ser pontual com as tarefas de casa e dormir durante as aulas. E ajudou-a. Conhecia uma família de oriundi generosos que não negariam guarida.

O pai pouco ligou que se mudasse. Sozinho, não teria que ficar lembrando da ex-mulher cada vez que olhasse para uma das filhas. Seguiu bebendo até que um dia foi atropelado, morrendo no local. As meninas, quando souberam, já estava enterrado. Choraram um pouco e repartiram o parco montante do seguro recebido pela mais velha, que também encarregou-se de esvaziar o pequeno quintal, mudando-se para a casa do namorado. Nomeada tutora da mais nova, não se opôs a que fosse definitivamente acolhida na casa de um Brindisi.

Yolanda dos Santos era uma menina negra de doze anos quando foi morar com “os italianos”. Cumpria as tarefas menores da casa e era bem tratada pelos patrões, que deram um quartinho só para ela. Logo melhorou seu rendimento no colégio. Ficou mais esperta e alegre. Com a sua parte do seguro e seu ordenadinho pôde comprar algumas roupas e coisinhas de adolescente. Tinha um belo rosto e um corpo bonito, precocemente desenvolvido.

Entre suas tarefas estava cuidar da menina Luiza, uma mesticinha meio italiana e meio índia guarani. Quando a mãe apresentou sua nova babá, Luiza tinha quatro anos. As duas se deram bem desde o momento em que se conheceram. Era uma rir e a outra rir também, sem motivo. Brincavam juntas, corriam, pegavam. E tudo que Luiza se recusava a fazer, tudo que imploravam para que fizesse, Luiza fazia se Yolanda pedisse. De quebra, a pequena babá protegia Luiza da zanga dos adultos, escondendo levadezas, limpando sujeiras, dizendo que havia comido tudo e até pedira mais. Fato era que Luiza era uma menina arredia e inquieta, que gostava da Natureza e de enfrentar os mais velhos. Diferente das priminhas obedientes, que sempre pareciam saídas do banho, com os cabelos escovados e a roupa permanentemente passada.

Com o tempo, os patrões foram confiando mais e mais Luiza à babá. Passaram a aproveitar as noites para sair e, às vezes, passavam um ou dois dias fora, em Novo Hamburgo ou Porto Alegre. Quando não estavam, Luiza dormia no quartinho de Yolanda. Eram noites de grande preparação. Havia as brincadeiras, o banho e depois as histórias. Depois dormiam agarradas, como se sentissem muito medo ou tivessem muito frio.

Yolanda já tinha corpo de mulher; embora os seios fossem pequenos, os músculos eram bem desenvolvidos, e tinha as pernas, as nádegas e os braços rijos, embora roliços. Luiza, perguntava-lhe tudo e queria apalpa-la, sentir a carne por baixo da cor negra. Na hora de dormir costumava enroscar suas pernas nas de Yolanda, até sentir os pelos arranhando; gostava também de aconchegar-se com a mão nos seios da babá. Às vezes apertava-lhe tanto os bicos que Yolanda reclamava e chorava, mas deixava. Luiza sentia uma ponta de prazer ao dominá-la e fazer com que deixasse que a machucasse.

Luiza masturbou-se, pela primeira vez, aos sete anos e, aos oito, pedia que Yolanda o fizesse nela ou junto com ela. As noites em que passavam juntas ficaram mais direcionadas e conduzidas através da mesma rotina – masturbavam-se, se enganchavam e, quando terminavam ficavam olhando-se no espelho do armário, observando o contraste da pele negra de Yolanda e a muita alva de Luiza. Yolanda, até então, não conhecera homem. Mas sentia pulsões dolorosas quando via um rapaz mais bonito, ou quando o patrão lhe dirigia olhares de soslaio.

Um dia Luiza e Yolanda souberam que haveria uma grande festa para comemorar o aniversário do bivô Carlo Brindisi. Muita gente viria para o jantar; alguns dos parentes até ficariam na casa, inclusive uns Brindisi do Rio de Janeiro e um sobrinho argentino, conhecedor de vinhos. A excitação tomava conta de todos, patrões e empregados. E Luiza e Yolanda não fugiam à regra, trocando risinhos a cada comentário sobre os parentes desconhecidos.

Carlos, seus pais e seu avô foram os primeiros a chegar. Yolanda logo notou o olhar que o menino lançou para Luiza. Os dois tinham a mesma idade, mas Luiza parecia bem mais desenvolvida do que Carlos, embora Carlos fosse maior que ela. Logo se tornariam companheiros de travessuras, passando longe da vista dos pais boa parte do dia.

Em seguida chegou o primo argentino. Um louro, alto, com jeito de senhor de si. E aí o coração de Yolanda bateu forte. Em um dado momento trocaram olhares, e ela soube, com absoluta certeza, que ela seria dele. Não era à toa que um pai-de-santo lhe havia dito que era filha de Nanã.

A noite transcorreu como deveria. O patriarca Umberto Brindisi não cabia em si de ver tantos descendentes juntos e felizes. Cantou-se, bebeu-se e comeu-se à farta. Os brindes e discursos se sucederam num ambiente de grande alegria. Yolanda, envolvida com os serviços de mesa, não deixou de observar as estripulias de Luiza e do menino Carlos, que se esconderam debaixo da mesa. Nem de notar o sorriso que lhe voltava, vez em quando, o argentino.

Mais tarde, depois que a festa serenou e o convidado argentino foi liberado de atenções, Yolanda entabulou com ele uma troca de sinais que indicava a cozinha como local de encontro, em uma hora mais.

Encontraram-se à hora marcada e, sem palavras, beijaram-se. O argentino, por usar bem o nariz, tratou de sentir o perfume da pele de Yolanda; e Yolanda, por precisar muito, tratou de ouvir-lhe o peito. Em breve estavam se abraçando com força, e se esgueirando para o quartinho de Yolanda.

O argentino mal cabia na cama. Na verdade, não sabia o que fazer. Durante todos os anos de sua juventude dedicara-se ao negócio da família em Mendoza, e deixara a fornicação para o irmão Aldo. Era a primeira vez, portanto, que estava com uma mulher. Por sua vez, Yolanda era muito jovem e desconhecia o que fazer com um homem. O desejo, entretanto, venceu a inexperiência. Quando viu a bela negra totalmente nua à sua frente, o argentino libertou seu corpo para que fizesse o que fosse. E assim copularam: pela primeira vez de frente, com o argentino entrando pelo meio das pernas de Yolanda, deflorando-a com vigor; e depois mais devagar, subindo Yolanda sobre ele, empalando-se e comendo-o ao mesmo tempo.

Estavam cansados para tentar outras posições. Passaram um tempo aconchegados, como nos filmes de que Yolanda gostava. Depois decidiram que era melhor que o argentino fosse para o seu quarto. Despediram-se carinhosamente e o argentino, em voz baixa disse que seu nome era Nicoló. Yolanda respondeu “Eu sei...” e disse-lhe o seu, antes de abrir o sorriso que ficaria guardado na memória dele, fechando a porta em seguida. Cuidadosamente.

Na manhã seguinte Nicoló dava a Yolanda um adeus mal-disfarçado e partia de volta para Mendoza. E Luiza e Carlos corriam pelo quintal e embrenhavam-se pela ribanceira do rio. De alguma forma o coração de Yolanda estava leve e feliz com os últimos acontecimentos...

17AGO10

Sincronicidades - O Pianista


Picasso - Fase Azul

Não pensava que a vida de músico seria tão difícil em São Paulo. Muitos estavam desempregados ou viviam na corda bamba dando aulas a trinta reais. Poucos conseguiam um emprego estável – ainda assim mal remunerado – e os concursos públicos eram um funil absurdo.

Durante as primeiras semanas abrigou-se num albergue. Até que conheceu um outro artista em dificuldades na roda da sopa. Conversaram sobre seus problemas e acabou que Michel, o pianista, passou a dividir uma kitchinette com Mathias, o pintor, em troca de alguns caraminguás.

Não havia cama para Michel, de modo que teve que dormir no chão, sobre alguns cobertores velhos. Era tudo muito deprimente. Não bastasse isso, Mathias era um chorão que vivia reclamando da via crucis para  vender suas obras nas galerias da cidade – todas dominadas por mulheres belíssimas, mas frias e irredutíveis. E principalmente chorando pitangas quando falava de uma tal Mercedes, sua musa e grande benfeitora. Às vezes simplesmente lamentava a ausência dela; às vezes ia mais fundo em sua mágoa, atribuindo à musa uma certa maldade por havê-lo seduzido e depois abandonado. Em troca, Michel uma vez contou a Mathias sobre a paixão que devotara à madrasta e o final trágico que precedeu sua vinda de Cunha para São Paulo, quando o pai pegara os dois em meio a uma cópula vespertina.

Nas horas em que ouvia os solilóquios melancólicos de Mathias, ele recordava-se do episódio de Cunha. Via no escuro o rosto ensandecido do pai e o corpo machucado de Olga. Sentia vergonha por haver pulado a janela espavorido, e chorava baixinho de remorso e de saudade. Um dia Mathias mostrou-lhe o quadro que pintara de Mercedes, pedindo-lhe que nunca comentasse o assunto. Mercedes era a expressão de Afrodite, uma dessas plêiades que seduzem tanto humanos como deuses; e o quadro, em si, mostrava talento, talvez genialidade. Mas deste capolavoro Mathias não desejava abrir mão, preferindo guarda-la para si que perdê-lo para outro.

A rotina de miséria e choradeira teve fim quando Michel arranjou emprego numa cantina. Primeiro como garçon, depois como pianista. Mudou-se rapidamente para um apartamentinho na Mooca, mas comprometeu-se a não perder contato e, quando fosse necessário, ajudar o amigo.

O pianista era muito bom mesmo. Tocava com desenvoltura os sucessos do momento, assim como músicas de décadas e gostos distintos, sempre com os acordes e as levadas que conferiam legitimidade às suas interpretações. Os clientes passaram a freqüentar a cantina mais para ouvir Michel que para degustar massas e vinhos. Aumentaram-lhe a paga e pode mudar-se para um apartamento de quarto-e-sala na Moema. Lá, se enfurnava e fornicava com clientes cujo desejo ultrapassava ouvir os sons melodiosos que produzia no piano.

Um dia, uma das clientes que visitava com regularidade o apartamento da Moema, apresentou-lhe um amigo, e este amigo ofereceu a Michel o emprego de pianista “da casa” em um bar de blues e jazz. Michel agora havia recuperado o amor-próprio e, de quebra, ganhava bem para tocar o que mais gostava. Estava feliz por não mais ter que tocar "New York, New York" ou "alguma coisa do Roberto Carlos".

Um dia, mais à vontade para ter contato com o passado, Michel vai a um cyber café e abre seu e-mail encardido. Tem medo de ter perdido seu gmail, mas lá estavam, intocadas, dezenas de mensagens não-lidas. Foi lendo algumas e apagando direto a maioria. Entre as que resolveu ler estavam as de Luiza Brindisi, sobrinha de sua madrasta, que passara um mês em Cunha. Luiza relatava o que havia acontecido com sua tia e perguntava onde Michel se encontrava e como estava indo; em outras mensagens lamentava a falta de respostas; em outras, ainda, pedia conselhos sobre a carreira musical que recém-iniciara em Ouro Branco.

Colhido de surpresa pela dor que sentiu ao saber que Olga perdera uma das vistas e que o pai fora condenado e estava mudo e catatônico desde o dia da desgraça, Michel respondeu à Luiza somente depois de passadas algumas semanas. Quando o fez, nada falou sobre Olga, seu pai ou si mesmo. Limitou-se a responder às indagações sobre a profissão de músico e discorreu um pouco de sua experiência em São Paulo.

Luiza, então, percebendo a porta aberta, multiplicou a quantidade de e-mails. A cada resposta ou conselho, enviava outras tantas perguntas. Anexava arquivos MP3 e fotos em JPG, e refletia sobre novos planos que variavam entre montar uma nova banda a prosseguir sozinha, cantando onde tivesse oportunidade. Michel divertia-se muito com os e-mails da “prima”, cuja verve era sincera e profusa, a cara tão linda quanto se recordava e a voz muito boa. Enviava de volta outros arquivos MP3, com suas últimas gravações.


A troca de e-mails foi ficando mais intensa e os dois “primos” passaram a depender da correspondência para discutir seus problemas e achados. Contudo, Michel  tinha medo de cansar Luiza e perde-la. Afinal, ela mesma confessara que se desinteressava rapidamente das pessoas.

Assim, e antes que a água lhe chegasse aos joelhos, Michel atendeu a um último e-mail de Luiza, dando-lhe o endereço do bar em que tocava e o nome da pessoa a quem procurar. Não acreditava que Luiza tivesse a coragem de viajar para São Paulo, em busca da duvidosa e árdua carreira que ele tratara de desestimular. E daí em diante não mais respondeu aos e-mails que lhe chegavam de Ouro Branco.

17AGO10

domingo, 15 de agosto de 2010

Sexo Virtual - Vida e Morte


Menina e Pauzudo conheceram-se numa sala de bate-papo do Terra. Aos poucos foram trocando mensagens no reservado e logo evoluíram para o Orkut; e daí para o MSN.

Não passava dia sem que, logo de manhã cedo, Pauzudo enviasse uma mensagem galante para Menina. E não passava dia sem que Menina enviasse um “depo” agradecendo e dizendo palavras meigas para Pauzudo. Ambos eram casados e lutavam contra a dificuldade dos horários livres entre o trabalho e a casa; e a internet lhes oferecia um meio de dar a volta nesses obstáculos.

Pauzudo e Menina também achavam que a internet lhes permitia a troca segura de fantasias. Muitas vezes, entretanto, a conversa tornava-se séria, com um e outro confessando algum problema ou dizendo que esperava muito que se conhecessem pessoalmente.

As conversas foram evoluindo e, do tati-bi-tati das insinuações, passou à referência escrachada de preferências e desejos. Menina foi revelando uma fome insaciável e Pauzudo, de sedutor, passou a provocador constante; ela postava fotos sensuais no seu perfil e ele as comentava, dizendo-se sempre excitado.

Em breve estavam se vendo na webcam. No início ainda tímidos, com o tempo passaram a mostrar-se e a exercitar-se na arte de excitar um ao outro. Até que um dia começaram a masturbar-se diante das câmeras, num processo que combinava voyeurismo e exibicionismo.

Menina tem os seios volumosos e Pauzudo um pau bem disposto. De modo que as cenas de sexo virtual se desenvolviam com o uso estes atributos. Pauzudo dizia: “Isso, Menina, tira esses peitos pra fora... Isso... agora puxa esses bicos... machuca... puxa mesmo... ahhh...” E Menina retrucava: “Quero ver esse teu pau, vai... mostra esse pau, cachorro... isso... bem duro... quero ver você esporrar!... áiiiii”. Terminavam normalmente com Pauzudo tendo que se limpar e Menina mostrando-lhe os dedos melados, recém tirados da boceta. Um observador que pudesse vê-los neste momento diria que eram experientes de outros carnavais, embora afirmassem, um ao outro, que esta era a primeira vez.

O tempo é o senhor da razão. E tanto Menina quanto Pauzudo, mesmo enlaçados um com o outro, construíam seus “networks” de amores. Pauzudo corria atrás de uma tal de Tetéia, enquanto Menina respondia maliciosa aos galanteios de um tal de Guri. Isto para falar do pessoal da primeira fila de cada um... E com o tempo Menina foi descambando para os lados de Guri, atrasando-se, ora caindo sem aviso e não voltando, ora faltando aos encontros com Pauzudo; e Pauzudo, sempre gentil, ia aceitando as desculpas de Menina e devolvendo o mesmo comportamento, enquanto cafungava o cangote de Tetéia.

Até que um dia, saciados daquele pote de mel, Pauzudo e Menina tornaram-se apenas amigos, enviando-se “ois” e “olás” que dispensavam respostas. Ambos desenvolveram novas habilidades com novos parceiros: Menina agora exibe a boceta e o rabo para um tal de Joel e Pauzudo faz seções de strip para uma tal de Dengosa. Os dois seguem se masturbando e gozando pela rede afora; e, embora sintam afeto momentâneo pelos homens e mulheres de quem são parceiros, não lhes passa pela cabeça aceitar de verdade um convite para um encontro “na real”.

15AGO10

sábado, 14 de agosto de 2010

Sincronicidades - "Lluvia de Piedra""


Granizo
Nicoló Brindisi levantou-se muito cedo. Às sete e meia da manhã de um dia de Inverno, ainda noite, rumava para a finca dirigindo o seu velho Ford Falcon e maldizia o governo da província por ser tão fraco diante das decisões vindas de Buenos Aires. Precisava muito de crédito público subsidiado, sem o qual não seria capaz de comprar a rede anti-granizo necessária para cobrir, ao menos, um terço do vinhedo. Havia tomado “lluvia de piedra” no ano anterior, perdido muitas plantas e muita uva. Este ano não resistiria se lhe sobrasse, mais uma vez, esse presente dos céus. Conhecia o intenso sofrimento dos vinhateiros de San Rafael, freqüentemente premiados com excesso de chuvas ou quedas intensas de granizo e se envergonhava de desejar que fossem eles os atingidos, e não ele.

Quando o pai de Nicoló, Dino Brindisi, chegou à Argentina, no final dos anos trinta, ficou maravilhado com a extensão do país, a quantidade e a qualidade de terra não cultivada, e decidiu abandonar o ofício de oleiro para dedicar-se ao cultivo de frutas. Primeiro, atraído pela quantidade de oriundos, rumou para a Patagônia Argentina, estabelecendo-se em Neuquén. Ali, chegou a cultivar pêssegos e maçãs. A concorrência, entretanto, era muito conservadora e não o animou a ficar. Mudou-se, então, para Mendoza, passando ao cultivo de uvas viníferas, primeiro como encarregado de um pequeno vinhedo no vale do Uco e, depois, como co-proprietário de um vinhedo de 35 hectares na mircro-região de Alto Agrelo. Em muito foi ajudado pela Signora Alda, nascida Ricchieri, -- a quem conhecera no navio que o trouxera da Itália – esposa e parceira que administrou, com muita sabedoria, as finanças do casal, além de dar a Dino dois filhos – Nicoló e Aldo.

Com o passar tempo, muito trabalho, e graças à habilidade financeira de Alda, Dino expandiu os negócios. Além de comprar terrenos vizinhos, todos com os devidos direitos de água, investiu na construção de uma bodega, equipando-a com o suficiente para a produção própria, iniciada com a assistência do compadre Jorge González, um experiente enólogo. Jorge, um bom amigo, já vinha dirigindo a produção de vinho de Dino em bodegas de terceiros e dera suporte a Dino na venda do vinho no atacado.

Muito antes de seu primeiro ano como produtor de vinho, Dino já conhecia as variedades em que deveria concentrar seus esforços. Ouvindo bem o que os compradores de uvas desejavam, observando com atenção os rótulos disponíveis nos restaurantes, lendo os jornais de Mendoza e, sobretudo, conversando muito com proprietários, bodegueiros e enólogos, Dino decidira dobrar o número de carreiras de Malbec, aumentar o número de carreiras de Cabernet Sauvignon, manter as carreiras de Merlot e plantar alguma coisa de Chardonnay. Esta última decisão por insistência de Alda, que o convenceu a ter uma variedade de primeira colheita para antecipar caixa. Com a vinificação de suas uvas em bodegas de terceiros, Dino preparou-se para ter uma produção de vinho que não iria depender de terceiros, em sua bodega.

A atividade do vinhateiro, entretanto, depende não só da sua capacidade de trabalho, da sua inteligência e espírito empreendedor, da disponibilidade de recursos e do mercado. Depende principalmente de variáveis não controláveis, como a meteorologia, e de algo que só o decurso do tempo provê, como a experiência de muitas e muitas colheitas e o envelhecimento das plantas. Assim, Dino teve que lidar com alguns revezes, tão mais sérios quanto fosse o despreparo para antecipa-los e mitiga-los. E, para, supera-los, novamente foi importante a família e a rede de relacionamentos de Dino.

Além de Alda, Dino podia contar com o ombro e a diligência de Nicoló, o primogênito. Nicoló desde pequenino interessara-se pelo que fazia o pai, acompanhando-o por toda a parte. Assim, muito cedo aprendeu os segredos do vinhedo, da lida com a terra, com as uvas, as pragas e a poda. Mais tarde, já rapaz, foi introduzido à elaboração de vinhos pelo padrinho Jorge González, tornando-se gerente da recém-inaugurada Bodega Brindisi aos dezenove anos. Junto com o pai comprava, vendia, lidava com o encarregado da finca e com os peões da época da colheita; com Jorge acompanhava todo o processo de preparação do vinhedo e de vinificação e guarda na bodega. Não tinha tempo para qualquer outra distração que não fosse o vinhedo e o vinho.

Já Aldo, o caçula dos Brindisi, era um fantasista distraído. Por certo acompanhava o pai aqui e ali, mas preferia a companhia da mãe, louvando-se em Matemática desde os tempos de colégio. Só que nada de prático saía das mãos de Aldo; preferia lidar com equações e problemas matemáticos, tendo passado meses enfurnado com a demonstração do Teorema de Fermat. Também gostava de olhar os céus e ler sobre fenômenos celestes. Sua única incursão nos negócios do pai deveu-se a um investimento equivocado, feito na compra de um canhão antigranizo destinado a bombardear as nuvens com catodos, interferindo na formação de cristais. Tal instrumento, de efeito bastante duvidoso, fora utilizado no passado, e depois abandonado, pela maioria dos proprietários, em prol do uso de redes anti-granizo estendidas sobre as videiras.

Embora tido como um fracasso na família, Aldo era um sucesso com as jovens de Mendoza, gastando bem a mesada que lhe destinava a mãe. Dançava, cantava e entretinha os amigos com suas teorias baseada numa tal Matemática do Improvável. Comunicativo, buscou e manteve contacto com os Brindisi do Brasil, que passou a conhecer quando revirava uma caixa de papelão onde se encontravam fotografias e cartas que o pai guardara. Com certa constância se correspondia com os filhos de Umberto Brindisi, que viviam em Ouro Branco, no sul do Brasil; e insistia que viessem visitar Mendoza, enquanto os de lá insistiam para que viesse conhecer o Brasil. Dino e Alda divertiam-se quando liam as cartas e viam as fotos dos Brindisi de Ouro Branco e de outros Brindisi que ficaram no Rio de Janeiro. Mas não tinham tempo ou recursos para mais nada que não fosse o negócio dos vinhos.

E enquanto Nicoló tomava decisões junto com os pais sobe os vinhos a elaborar, Aldo namorava as moças de Mendoza e observava os céus; enquanto Nicoló definiu que os Vinhos Brindisi tinham que firmar-se no mercado de varietais, deixando de lado os cortes, Aldo acumulou dados sobre o mapa celeste de Mendoza e emprenhou uma tal de Pilar, “La Rubia”, após uma tarde ouvindo Charly García no Parque San Martín. Era o início da década de 80 e o fim do ciclo militar trazia à Argentina um forte sentimento de modernização e renascimento. E foi dessa forma casual que Dino e Alda tornaram-se avós de Rafael Brindisi, um lourinho saudável que nasceu com 4 quilos e meio, medindo 55 centímetros.

Pilar e Aldo não se casaram, mas ela e o menino Rafael foram viver na companhia dos Brindisi. Pilar era muito jovem e ficava feliz por poder deixar Rafael sob a guarda da avó, enquanto saía com as amigas. Em contrapartida, Aldo abandonou a vida que levara e foi dedicando-se, cada vez mais, à Astronomia e ao radioamadorismo, sua mais recente paixão, passando a conversar diariamente com um primo de Ouro Branco, um tal de Tadeu Brindisi. Foi assim que soube da existência de uma outra família, que havia vindo da Itália no mesmo vapor – os Babinski. Józej Babinski, o polonês amigo de seu pai e de seus tios, teria testemunhado o chamado “Evento de Tunguska”, atribuindo-lhe um sentido que deixou Aldo no mínimo curioso.


A amizade entre Tadeu e Aldo tornou-se intensa, tanto mais que os dois partilhavam um interesse comum: os corpos celestes, suas órbitas e significados. Aldo, o mais bem preparado e de mais iniciativa, já havia entrado em contato com o Spacewatch, grupo de pesquisadores da Universidade do Arizona, que mantinha constante observação de meteoros, estrelas cadentes e cometas. Assim, em 1993, fora um dos primeiros a saber que um meteoro de grandes proporções poderia estar em rota de choque com a Terra, possivelmente ao Sul da América do Sul. Imediatamente repassou a notícia a Tadeu e iniciou um movimento em Mendoza, logo rebatido em Ouro Branco, para organizar o êxodo em direção a regiões de menor risco. O catastrofismo que se seguiu teve imediata repercussão mas, felizmente, dois equívocos importantes foram corrigidos: a órbita do meteoro foi corrigida, devendo ele passar bastante longe da Terra; e somente em 2.028! De qualquer maneira, o evento serviu para estreitar ainda mais a amizade entre os primos. E Aldo prometeu a si mesmo que visitaria Ouro Branco tão logo pudesse.

Mas não foi Aldo o primeiro dos irmãos a visitar o Brasil. Atento ao mercado internacional, Nicoló, que tomara a frente de toda a área comercial da Bodega Brindisi, resolveu viajar ao Brasil antes que o século XX chegasse a seu fecho. Havia provado vários vinhos brasileiros e chegado à conclusão pessoal que os argentinos eram muito superiores, em preço e qualidade. As regras do Mercosul favoreciam a exportação para o Brasil e Nicoló estava disposto a encontrar um distribuidor brasileiro para toda a linha dos Vinhos Brindisi. Primeiramente, esteve no Rio e São Paulo; em seguida visitou a concorrência no Vale dos Vinhedos e resolveu tirar o fim-de-semana em Ouro Branco, para conhecer a “família brasileira”.

Quando chegou a Ouro Branco, Nicoló ficou surpreso com o tamanho da família e a diversidade de seus familiares. O avô Umberto – que calhava de aniversariar naquela data – havia procriado abundantemente e todos os tios tiveram muitos filhos. Várias profissões e negócios estavam representados no grande jantar oferecido em homenagem a Umberto Brindisi e Nicoló sentiu-se profundamente emocionado com os discursos que lhe brindaram a visita. Todos estavam felizes e riram muito quando discutiram futebol. Gremistas e Colorados tiveram seus momentos de exaltação. Até um ramo dos Brindisi que havia ficado para trás, no Rio de Janeiro, esteve representado na discussão futebolística, mostrando o escudo do Botafogo espetado na lapela quando Nicoló exibiu a carteira de torcedor do Boca Juniors.

Ao final da noite, com quase todos já despedidos e idos, Nicoló foi agarrado pelo braço por um primo, que insistia em querer mostrar-lhe uma grande surpresa. E foi praticamente forçado a sair da casa e seguir o parente até uma pequena construção, erguida no grande quintal. Ao aproximar-se, notou a antena que se projetava para o céu no topo do telhado; e logo viu que se tratava de uma estação de rádio amador e que o primo era Tadeu Brindisi. Não quis estragar o a surpresa e encenou um “oh” quando Tadeu lhe mostrou a bancada, o rádio e o microfone. De lá, chamaram o Aldo e depois Dino e Alda. Nicoló não se recordava de ter falado tão longa e ternamente com o irmão.

Na manhã seguinte, quando tomava café antes de partir para Porto Alegre, onde tomaria o vôo de volta para Buenos Aires e dali para Mendoza, Nicoló falou pela primeira vez sobre os negócios da família na Argentina. Descreveu o vinhedo e a bodega, declinou números e planos, e elogiou a Cidade de Mendoza, garantindo que qualquer Brindisi seria muito bem-vindo à sua casa. Tinha lágrimas nos olhos quando despediu-se de todos e rumou para o carro, disfarçando o adeus de mão que deu à empregada Yolanda, com quem passara a noite.

14AGO10

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Sincronicidades - Meteoros


Explosão de Tunguska - Floresta destruída.
Desde sempre os meteoros, assim como os cometas e as estrelas cadentes, despertam a curiosidade, o medo, a imaginação das gentes. A estes fenômenos celestes foram atribuídos avisos, enchentes, guerras e toda sorte de catástrofes, como o Terremoto de Lisboa de 1755. No entanto, ver-se um risco no céu é considerado um bom augúrio. Tanto assim que o Evangelho de Mateus reporta que uma estrela cadente anunciou o nascimento de Jesus e guiou a peregrinação dos Reis Magos até o estábulo onde se encontrava o Menino Deus.

Com a largada das Grandes Viagens e o avanço da Ciência da Astronomia, o conhecimento da posição e do movimento dos corpos celestes aprofundou-se. Os instrumentos, a observação sistemática e as teorias bem fundadas passaram à vanguarda das explicações dos fenômenos envolvendo asteróides, cometas e estrelas cadentes.

Embargoless, até hoje seguem em paralelo as explicações ou teorias não-científicas, bem mais interessantes e atraentes, para o aparecimento de movimentação de estrelas cadentes, cometas e meteoros, e os efeitos de uns e outros, atribuindo-lhes “sinais” ou forças extraordinárias. Só levando em conta o século XX, há vários exemplos dessas curiosas teorias.

No início do século, um asteróide explodiu a cerca de oito quilômetros acima da superfície do rio Tunguska, na Sibéria. Os astrônomos não têm a menor dúvida sobre a causa do fenômeno. Para eles, tratou-se de um asteróide, ou de um fragmento de cometa, de magnitude situada na casa das duas dezenas de metros, que “roçou” a superfície da Terra, e cuja explosão, ocorrida com a sua entrada na atmosfera, liberou uma energia na casa dos 20 megatons.

Já os místicos têm outra explicação para o “Evento de Tunguska”. Para eles, foi um aviso, vindo dos céus, para a seqüência de guerras, perseguições e derramamento de sangue que seguiu-se à explosão de uma bola de fogo. Explicam, assim, a onda de martírios e sofrimentos que se inicia com a Revolução Russa de 1917, progride com a guerra Polaco-Soviética e alastra-se por toda a Europa , África e parte da Ásia.

Um polonês de nome Babinski teria sido a pessoa a experimentar o “Evento Tunguska” mais de perto. Segundo afirma num manuscrito rudimentar, encontrado numa olaria semi-destruída no bairro de Barro Vermelho, em Cunha, SP, o fenômeno a que chama “Sinal de Tunguska” ajudou-o não só a antecipar o nascimento de seu filho, como também a driblar os confrontos ocorridos na fronteira russo-polonesa e aqueles deflagrados com o advento da Segunda Grande Guerra. O “Livro de Babinski” foi traduzido do Polonês para o Português e mais três idiomas, tornando-se uma obra “cult” entre aqueles que vêem mensagens escritas na abóbada celeste. Na Argentina, a edição de banca do “Livro de Babinski” inclui um simpático jogo de runas, cujas pedras são de plástico imitando osso.

Durante os anos 60 e até o final dos anos 70 – época de eventos de grandes repercussões, como a Revolução de Maio na França, a Guerra do Vietname e Woodstock, e os "anos de chumbo"  da Ditadura Militar no Brasil – ocorreu uma profusão de livros que exploraram a explicação não-científica para os grandes conflitos e proclamavam uma solução pacífica ou mais justa para eles. Livros como “Eram os Deuses Astronautas”, de Erik Von Däniken e “The Teachings of Don Juan”, de Carlos Castañeda eram lidos avidamente pelos jovens. Outro desses livros era “O Despertar dos Mágicos”, de Louis Pauwels e Jacques Bergier, cuja leitura tornou-se obrigatória entre os jovens de classe média dos grandes centros urbanos do Brasil. Grupos de discussão juntavam-se no Rio e São Paulo para debater os “acasos” apontados pelos autores; e a revista Planeta tornou-se um guia dessa geração.

Não é de espantar, portanto, a grande credibilidade que teve o rumor – espalhado ao final da década de 70 – sobre a iminência do choque de um asteróide com a Terra, provocando um maremoto que cobriria a Cidade do Rio de Janeiro. Muitas pessoas acreditaram sinceramente na história e se dispuseram a rumar para a Região Serrana, levando toda a família e seus mais valiosos pertences para longe do cataclismo. Algumas destas pessoas chegaram mesmo a vender seus imóveis por qualquer preço, ou a abandoná-los, partindo em direção à acolhida de familiares nos estados vizinhos. Nada aconteceu na data prevista e tudo retornou à normalidade; mas as pessoas encantadas pela história continuaram a nela acreditar. E provavelmente muitas faleceram jurando que era só esperar para ver o fenômeno ocorrer na virada do século...

Um pouco de história da Astronomia Contemporânea pode situar o impacto de notíciais científicas sobre o imaginário das pessoas. Em 1980 foi criado um grupo chamado Spacewatch na Universidade do Arizona, USA. A finalidade do grupo é a de estudar asteróides e cometas, antecipando órbitas que podem trazer risco para a Terra. Os releases do grupo têm sido tomados ao pé da letra por alguns, embora se refiram a trajetórias futuras ou possíveis. Quando lidos de forma livre, geram grandes temores e inspiram filmes do gênero “catastrofista”, como “Deep Impact”, de 1998. Anúncios de órbitas detectadas pelo Spacewatch têm provocado tal tipo de alvoroço, como se deu em 1993 e 1997.

Em 1993 um NEO (“Near Earth Object”) chegou a 150.000 quilômetros da Terra – uma distância considerada “muito próxima” para os padrões astronômicos. A notícia provocou um alarme geral, principalmente em Mendoza, na Argentina, onde as chuvas de granizo, que destruíram grande parte das videiras, foram debitadas à proximidade funesta do asteróide. E muitos ainda acreditam que o encerramento do programa televisivo “Xou da Xuxa” na Argentina, a derrota por 5 a zero para a seleção da Colômbia, e a re-eleição de Carlos Menen fora anunciada por aquele NEO.

Em 1997 o NEO catalogado como 1997XF11, de cerca de 1 quilômetro de diâmetro, teve a órbita de encontro estimada pelo Spacewatch: em 2028 o NEO passaria a 48.000 quilômetros da Terra e qualquer desvio desta rota poderia colocá-lo em rumo de colisão com o planeta, provocando a destruição de cidades e maremotos de grande extensão. Parte da população de cidades do Sul do Brasil, que estaria num dos pontos possíveis de maior proximidade do curso do NEO, entrou em pânico e iniciou preparativos para deixar a região. Coincidentemente ou não, um estancieiro de Ouro Branco, aparentado de Józef Babinski – o mesmo Babinski do “Evento de Tunguska” –, chegou a liderar um grupo que buscava apoio para o êxodo. Felizmente, na mesma semana outro anúncio do Spacewatch esclareceu que novos cálculos haviam corrigido a órbita do NEO, que agora passaria a uma distância de mais de 1.000.000 de quilômetros da Terra.

Efetivamente, Ciência e Misticismo andarão sempre em paralelo. O que uma não explica ou cuja explicação é tomada sem o cuidado adequado, o outro multiplica. Recentemente o aquecimento global virou pauta na Imprensa em todo mundo e mereceu um filme capitaneado pelo ex-candidato Al Gore. Na onda desta popularidade, muitos oráculos começaram a predizer o fim do mundo para 2012, ano em que termina o Calendário Maia. Logo os Maias, matemáticos extraordinários, envolvidos nesta lenda...

Catastrofismo
12AGO10

A meu irmão Z/, que resolveu partilhar comigo uma história, e ao meu irmão M/, que deverá ilustrá-la.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Sincronicidades - Migrantes

Józef Babinski não se dá bem com o frio e, no entanto, vive ao norte de Bratsk. Poderia ter ficado em Irkutsk, quando o trem deixou-o na estação da Transiberiana. Mas não – sucumbiu à insistência de Ewa, sua mulher, a aceitou o emprego de guarda florestal naquele fim-de-mundo, ao norte de Bratsk.

Estamos no verão Siberiano e, no entanto, faz um frio dolorido. Józef acorda muito cedo, vai urinar na casinha e volta tiritando para o quarto. O aposento é pequeno: uma cama, uma cadeira, uma mesinha e, sobre ela, uma lamparina. Józef mete-se na cama e, logo que pode, entre as pernas de Ewa. Copulam sem palavras; ouvem apenas o ranger da madeira sob eles e o zunir do vento lá fora.

Às 7:15 da manhã do dia 30 de junho de 1908, Józef atinge o clímax em Ewa. Frédérik, primogênito do casal, acaba de ser concebido. Ouve-se, logo após, uma explosão extraordinária para os lados do Rio Tunguska. Józef e Ewa abraçam-se, transidos de medo. Desconhecem que um meteoro mergulhara na atmosfera e explodira a 8 km da superfície da Terra. A explosão gerara uma bola de fogo e a energia liberada derrubara florestas à sua volta. Durante muitos anos cientistas e místicos travam um embate em torno das explicações para o fenômeno que Józef Babinski via como uma profecia. Não por acaso Joseph Babinski, renomado neurologista francês de origem polonesa, também enxergava profecias ao descrever certa reação do hálux (dedão do pé) que terminou sendo conhecida como “Sinal de Babinski”.

A Revolução Russa eclode em 1917, primeiro de forma “branca”, depois de forma violenta. Józef é alistado num contingente do Exército Branco e, por pouco, escapa de ser feito prisioneiro pelos Vermelhos. Consegue reunir-se com Ewa e o pequeno Frédéric, escapando a família de volta para a Polônia e estabelecendo-se em Modlin, às margens do Rio Vístula. Durante os dias que ali passa, Józef constantemente relembra a explosão de Tunguska e lê Gurdjieff e o Pentateuco. Já Frédéric gosta de ouvir os Estudos de Chopin na casa da pianista Grazyna, amiga de sua mãe.

Em 1921 a Polônia infligiu uma derrota vergonhosa ao Exército Vermelho. Derrota que foi vingada quando da invasão Nazi-Soviética no início da Segunda Grande Guerra, em 1939. Ao tempo da revanche, Józef e sua família já não estavam mais em território polonês. Em 1929, atento ao “Sinal de Tunguska”, Józef emigrara com sua família para a Itália, precisamente para perto de Verona, onde os Invernos eram tranqüilos e os empregos melhores.

Em Modlin conhecera na Igreja um piemontês, que lhe ensinara um italiano rudimentar e lhe dera uma carta de recomendação para um certo Mario Brindisi, originário do Piemonte, mas radicado no Veneto, na cidade de Pazzon. O viúvo Mario Brindisi confeccionava tijolos e telhas especiais em sociedade com seus irmãos, Dino e Umberto, precisava de mão-de-obra e recebeu Józef Babinski com boa-vontade. Józef, em retribuição, monstrou-se um operário de valor, logo aprendeu o dialeto do Veneto e passou a auxiliar dos irmãos Brindisi. Junto Józef aprendia e trabalha o filho Frédéric, que tem mãos delicadas, mas bem dispostas. As mesmas mãos que, às escondidas, acariciavam os seios de Zaira, filha única de Mario.

Um dia Mario confessou a Józef que ele e os irmãos já estavam fartos de ouvir a arenga de Mussolini e dos “Camicia Nera” que, com atos de violência, perseguiam tanto os camponeses como os pequenos comerciantes da região. Contou-lhe, então, que os Brindisi pretendiam emigrar para o Brasil, onde um punhado de parentes se estabelecera e prosperara no Sul. E perguntou candidamente se Józef não gostaria de emigrar com eles. Józef argumentou com as dificuldades que havia tido ao emigrar tantas vezes; falou ao amigo sobre sua família que já estava acostumando-se a Pazzon; disse-lhe que já tinha o suficiente para dar uma entrada na olaria. E respondeu-lhe que, por ora, não.

Mario era um sujeito perspicaz e já percebera a queda que a filha Zaira tinha por Frédéric. Armou, pois, um plano para convencer o amigo a partir para o Brasil. Como quem nada quer, anunciou a Zaira que partiriam para o Novo Mundo em breve e que havia convidado Józef para irem juntos com Frédéric e Ewa. Mas que o polonês se havia negado a ir. Zaira, então, cheia de apreensão e tristeza, foi ter com Frédéric e o fez prometer que influenciaria pai e mãe a embarcarem juntos na aventura brasileira.

O estratagema deu certo e em agosto de 1933 partiam num vapor, com destino ao Rio de Janeiro, Mario Brindisi e sua filha Zaira, junto com os irmãos Dino e Umberto, ambos solteiros, Józef Babinski, sua esposa Ewa e o filho Frédéric. Chegados ao destino, os irmãos Brindisi se separaram: Umberto resolveu ficar na Capital da República e arranjar emprego numa oficina mecânica; Dino seguiu viagem para Buenos Aires, encantado por uma italianinha que conhecera no navio e tinha família na Argentina; e Mario, com a ajuda de contatos já apalavrados, rumou para Mogi-Guaçu, Estado de São Paulo, junto com os Babinski, onde se estabeleceram com uma pequena olaria.

Como antecipado, Frédéric e Zaira casaram-se alguns meses depois da chegada ao Brasil. E dois anos depois nascia Giuseppe Babinski. A esta altura Vovó Ewa estava muito contente pois, além de ganhar um netinho, a quem cuidava com desvelo, descobrira parentes do marido em Carlos Barbosa, Rio Grande do Sul. Mario Brindisi, por sua vez, seguia correspondendo-se com os irmãos Dino e Umberto, que logo tiveram filhos cariocas e portenhos, torcedores do Botafogo e do Boca Juniors.

Após o nascimento de Giuseppe, as famílias de Józef Babinski e Mario Brindisi permaneceram do mesmo tamanho. Só aumentariam após o casamento de Giuseppe com Dona Angélica Fagundes, da Paróquia de Santa Edwiges. A esta altura, estamos no ano de 1965 e ainda estão todos vivos, Józef (que ainda fala de Tunguska, cutucando a mulher e piscando o olho) e Mario (que segue vociferando contra os fascistas de Verona), ambos com mais de oitenta anos, Ewa com um pouco menos, e Fréderic e Zaira chegando aos sessenta. Mas, quando Giuseppe e Angélica têm o par de gêmeos, Eva e José Babinski, em 1972, vivos estão somente Ewa (que lamenta as proles tão reduzidas), Frédéric e Zaira. E a olaria.

Angélica Babinski, de nascimento Fagundes, aprendeu rapidamente os segredos da cozinha italiana e polonesa, criando pratos em que uma intercalava-se com a outra. Ouvira dizer que a Hungria era a encruzilhada de várias culturas – o que resultava, por sua vez, numa culinária fantástica. Costumava dizer que sua cozinha era a sua Hungria, e cozinhava diariamente para todos os Brindisi e Babinski. Ewa, já sofrendo de Alzheimer, ria muito de tudo aquilo e perguntava as mesmas perguntas, inclusive sobre um certo primo András, o Húngaro, com quem se correspondera por algum tempo.

Deu-se então que Eva caiu doente. Foi definhando, definhando. Os médicos vieram e foram, passaram muitos remédios e, por fim, diagnosticaram uma leucemia intratável. Com Eva foram-se um a um dos parentes; primeiro Ewa, já velhinha, depois Frédéric e Zaira, num acidente de carro, e finalmente faleceu Angélica, de puro desgosto. Quando foi-se, não cozinhava mais; nem para o filho José que, a esta altura, cuidava sozinho da olaria.

Sentindo-se muito triste e só, José Babinski se amiga com uma tal de Bebete, que engravida, dá-lhe um filho e some na estrada, sem nunca mais dar notícias. José tem um profundo amor pela criança, mas não quer mais viver ali e, em 1992 vende a olaria e muda-se, com o pequenino Michel Babinski, para Cunha, onde se estabelece como oleiro.

Longe dali, uma numerosa prole de Brindisis popula a pequena cidade de Ouro Branco, Rio Grande do Sul. São estancieiros, comerciantes, profissionais liberais e até uma menina que canta muito bem, chamada Luiza. Sabem que pelo Estado de São Paulo e pelo Rio de Janeiro têm parentes. Mas estão ainda distantes para tê-los como parte da família e de suas histórias...


11AGO10

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Sincronicidades - Olaria


Babinski era oleiro em Cunha, São Paulo, cidade conhecida pela produção de cerâmicas de alta qualidade. A desconfiada população local achava estranho haver por ali um oleiro chamado Babinski, sem referência nem passado. No fim das contas, entretanto, tanto oleiros como ceramistas vivem de queimar o barro. E assim era.

Dona Olga, natural de Ouro Branco, Rio Grande do Sul, era professora da Escola Municipal Dr. Casemiro Rocha desde que se mudara para Cunha. Formara-se no reputado Instituto de Educação General Flores da Cunha e havia emigrado em razão do casamento com um jovem tenente da Polícia Militar. Enviuvou cedo e, tendo que complementar o orçamento da casa, dava aulas particulares de piano nas horas vagas.

Babinski tinha um único filho, de mãe desconhecida. Chamava-se Michel e estudava na Escola Municipal Dr. Casemiro Rocha, onde se tornou ardente admirador de Dona Olga. Passava as tardes sonhando e indagando sobre a professora. Assim, soube que a Dona Olga enviuvara e que estava a ministrar aulas particulares de piano.

Michel era um menino sensível e perspicaz, ajudava o pai na olaria e, enquanto suava, perguntava a Babinski por que o pai não era um ceramista, ao invés de cozinhar tijolos. Tanto insistiu que Babinski perguntou-lhe se queria aprender o ofício de ceramista. Respondeu que não; que preferia aprender música. Contou até que havia uma professora de piano que poderia dar-lhe aulas.

Babinski a princípio relutou; mas, levado a conhecer Dona Olga, assentiu e, mesmo com sacrifício, adiantou dois meses de aulas. Foi assim que o destino, aliado do ardil, colocou Michel e Olga lado a lado, sentados no banco de estudo.

Michel era aplicado e talentoso; e logo passou a merecer elogios que iam escritos em bilhetinhos dirigidos a Babinski. Babinski alegrava-se com os bilhetinhos e a sua aparência melhorava toda vez que ia ter com Dona Olga para tratar outro mês. Da aparência passou ao esmero com os tijolos, dando a alguns forma original, às vezes apondo-lhes relevos especiais, outras assinando-os com as iniciais do cliente da encomenda, outras ainda marcando-lhes o lado com o número 32. Estes últimos tijolos vendiam muito bem e puxavam as vendas dos demais.

Michel já era um estudante avançado, dominando alguns estilos e até improvisando melodias Seguia com as aulas de piano durante o mês de julho, quando Olga recebeu a visita de um casal de tios, acompanhados da prima Luiza, que vinha passar as férias em Cunha. Luiza era uma jovem de beleza exótica, resultado da mistura improvável dos sangues guarani e italiano. Cantava muito bem e logo ela e Michel ficaram amigos através da música. Os sonhos de ardor juvenil, entretanto, não visitavam os seios adolescentes de Luiza, mas permaneciam morando nas ancas de Olga.

Já ia o mês de setembro, Luiza voltara para Ouro Branco e Babinski seguia na corte da professora que dava aulas a Michel. Numa noite, após terminar um milheiro de tijolos, o pai confessa ao filho aquilo que já estava evidente: gosta da Professora Olga e pretende fazer-lhe uma proposta. O filho faz-se de surpreso e abraça o pai. À noite chora de culpa e tristeza.

Olga desenvolveu um gentil afeto por Babinski. Ainda uma jovem mulher, não se sentia preparada para a solidão. Em segredo nutria uma certa atração pelas mãos firmes, mas ternas, do oleiro. Assim que disse sim, sem pestanejar, principalmente ao saber que o oleiro, após tornar-se novedoso, prosperara. A ponto de poder comprar uma casinha nova não muito distante da Escola Municipal Dr. Casemiro Rocha. E em dezembro já moravam juntos, na Alameda Emilio Huble, Babinski, Olga, Michel e o piano.

Babinski e Olga viviam dias de alegria. Babinski cuidava de Olga com um desvelo exemplar: barbeava-se e tomava banho diariamente; perfumava-se; dizia palavras gentis; elogiava; aperfeiçoava o Português; recitava Olavo Bilac; e era profuso em carinhos e intróitos nas horas noturnas. Olga, feliz, retribuía. E sentia aquilo que sentem quem está feliz: o coração aberto, dono do mundo, e um grande poder para amar a tudo e a todos.

Em paralelo à felicidade do casal, preenchia casa a tristeza de Michel. O convívio com a madrasta em horas íntimas só fazia maltratar o sentimento que por ela tinha, em permanente conflito com a lealdade que deveria devotar ao pai. Sem poder concluir uma linha de ação que pusesse fim ao seu martírio, Michel resolve deixar que a vida o leve. E foi assim que, numa tarde modorrenta, sentados lado a lado no banco do suplício, Michel arriscou um beijo em Olga.

Olga, surpresa, resiste. Mas, tocada pela luxúria do momento, segue a torrente que lhe transborda o coração e acaba por devolver o beijo do enteado. Do piano ao quarto foram rapidamente. E na cama Michel solucionou, ao menos temporariamente, os mistérios da vida. Fizeram o amor vespertino que, na velhice, acomoda corações e, na juventude, prenuncia maremotos. As seções da tarde repetiram-se entre juras de amor e ondas de culpa. Nenhum sentimento por marido e pai era suficiente, entretanto, para interromper o desejo ou quebrar a cadeia de prazeres em que estavam presos Olga e Michel.

Os apaixonados, com o tempo, tornam-se descuidados. A paixão é tudo e exerce-la é mais importante que guarnece-la. Foi assim que Babinski surpreendeu sua mulher atracada com seu filho na cama do casal. A princípio o oleiro não soube o que fazer. Mas logo os sentimentos eclodiram e foi com furor que Babinski tomou de um cinto e começou a desferir golpes em um e outro dos infiéis. O temor reverencial tem enorme força, e Michel sucumbiu a ele: apressadamente, escafedeu-se pela janela e correu suspendendo as calças como podia, mesmo ouvindo os gritos de Olga e os pedidos de socorro.

Levou algum tempo para que alguém da vizinhança acudisse Olga. Quando o fez, encontrou a professora desacordada na cama, coberta de lanhos por todas as partes do corpo, principalmente no rosto. A um canto do quarto Babinski chorava de cócoras. Preso em flagrante, o oleiro está sendo processado com base na Lei Maria da Penha. Alvo do opróbrio da comunidade e da maldade da Imprensa, Babinski dá a palavra a ninguém. Ficará para sempre mudo; na mente, apenas uma parede de tijolos.

Envergonhado, mas contabilizando as vezes em que meteu-se entre as pernas da antiga professora de piano, Michel fugiu para a Capital, cuidando de deixar uma parede de tijolos protegendo a memória. Lá, depois de passar frio e fome, conseguiu ganhar algum tocando em bares e prostíbulos. Recentemente adquiriu certa estabilidade com uma banda de blues que se apresenta semanalmente num café sofisticado da Ministro Rocha Azevedo, esquina com Lorena.

Quanto a Cunha, logo após o ocorrido na Alameda Emilio Huble, um cataclismo abateu-se sobre a estância climática. Como resultado das fortes chuvas de janeiro, enxurradas destruíram pontes, estradas e lavouras. Centenas de pessoas ficaram desabrigadas e a Secretaria Municipal de Saúde computou duas dezenas de mortes em virtude de desmoronamentos na região. Uma coleção de vasos de cerâmica Raku foi encontrada entre os destroços de uma olaria situada no bairro de Barro Vermelho.

10ago10

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Notas:

A cidade de Cunha, cujo nome completo é Nossa Senhora da Conceição de Cunha, foi assim batizada em homenagem ao então Governador da Capitania de São Paulo, Francisco da Cunha e Menezes. Já o General Flores da Cunha nenhum parentesco tinha com Francisco da Cunha e Menezes; é um vulto militar gaúcho de grande importância, sendo lembrado pelo seu papel decisivo na Revolução de 30 e, depois, na Revolução Constitucionalista de 32, quando apoiou Getulio Vargas.

O Dr. Alfredo Casemiro Rocha diplomou-se em Medicina, com louvor, na Bahia, onde exerceu durante algum tempo, até mudar-se, pelos bons ares, para Avaré e, depois, para Cunha. Nesta cidade tornou-se político proeminente, elegendo-se deputado estadual e federal, senador pelo Estado de São Paulo, e prefeito de Cunha. Destacou-se, finalmente, pelos préstimos de cirurgião, que colocou à disposição dos constitucionalistas paulistas. Longe de onde descansa o Dr. Casemiro Rocha, repousa, no Mausoléu do Obelisco de São Paulo, ao lado do poeta Guilherme de Almeida, outro herói de Cunha – o lavrador Paulo Virgínio, torturado e depois fuzilado pelas tropas cariocas, por recusar-se a revelar a posição das tropas paulistas. Muitas famílias paulistas guardam, até hoje, o anel de prata com a inscrição “Dei ouro para o bem de São Paulo”, recebido em troca das doações feitas ao esforço revolucionário.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pense Nisso

Estás vendada e crês que não me conheces. Deixo que penses assim, se te dá prazer. Te aproximas de mim procurando alguma referência: meu cheiro, uma palavra, uma ordem. Nada tens de mim, exceto meus olhos que te olham e que tu não vês.

Te vingas porque me sabes assim: sem te dar, mas também sem te ter. E te viras de costas, sobes as saias e dobras o corpo ao meio para a frente. Observo, então, teus calcanhares, tuas pernas, tuas coxas... e tuas nádegas. A curva de tuas nádegas. Me dás tempo. Mas então te abres e me deixas ver a castanha de tua boceta, a pele fina que a segue para cima e, finalmente, teu cu - o olho ciclope que se fecha como o obturador preciso de uma Schneider Componon.

Acompanho o movimento e a pausa que fazes, após. E sinto o desejo que me sobre à boca, antes de enfiar-te a língua.


30jul10

Nada Quero de Meu



nada do que é meu
é meu.
nada quero de meu.
aquilo que é meu
não é.
minha mão não é dona
da mão que ela aperta.
assim quero eu.



30jul10

Sincronicidades - Sonata para Luiza



Tenho guardado recordações durante todos estes anos em que viajo pelo Brasil afora. Nada se compara, entretanto, à memória das minhas duas primeiras estadas no Sul.

Aos oito anos de idade eu era um menino ativo e esperto. Vivíamos no Rio de Janeiro, a duas quadras da praia, e eu já tinha minha morey boogie e pegava onda à vontade. Sabia bem das molecagens de rua e quase havia quebrado o pescoço no teto do prédio tentando ver uma vizinha trocar a roupa.

Eu era, enfim, feliz, atordoado apenas pela curiosidade que todo menino já nessa idade tem: sexo. Meus pais eram legais comigo e eu era bom aluno, merecedor de prêmios e perdões. Íamos juntos a restaurantes e parques e, nas férias, sempre encontravam um jeito de me incluir nos programas deles. Assim é que, quando meu pai me disse que íamos a Ouro Branco para a festa de oitenta anos do avô dele, meu bisavô, achei apenas natural que começasse a fazer minha mala.

Salvo um casal de tios que nos visitaram no Rio, eu nunca havia tomado muito contato com esse lado da família. Ouvia histórias, é claro, de como meu bisavô havia vindo do Piemonte para a Argentina; e de como, na parada do navio no Rio, ele ficou e o meu tio-bisavô seguiu para Buenos Aires e, depois, se estabeleceu numa província do sul da Argentina, onde tornou-se um vinhateiro de sucesso. Meu bisavô, também, foi para o sul – logo depois que minha bisavó morreu, ele juntou-se a outro grupo que vinha da Itália, deixou meu avô na casa de parentes de minha bisavó no Rio, e rumou para Porto Alegre. Finalmente, estabeleceu-se em Ouro Branco, procriando fartamente por lá...

Ao que parece, as mágoas causadas pelo abandono de meu bisavô foram superadas e os Brindisi puderam seguir em paz aqui e lá. Total que escrevem-se cartas emocionadas, ainda em italiano, e remetem-se fotos. Fotos que fui acostumado a ver quando visitava meu avô Carlo, cujo nome deu origem ao meu nome. E foi através dessas imagens que comecei a conhecer minha família longínqua – os tios e tias, os primos e primas, as casas, as fazendas, os vinhedos, as pradarias e planaltos. Por melhores que fossem as imagens, não fariam justiça, como pude testemunhar, às pessoas e às paisagens que conheci em minha primeira viagem.

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Embarcamos meu pai, eu, meu tio Sandro e meu avô Carlo, para Porto Alegre no dia 25 de novembro – me lembro até hoje, porque as festas de aniversário de meu bisavô começariam no dia 28, com um grande jantar na estância de meus tios-avós. Nós ficaríamos também hospedados na estância, para maior conveniência de todos, e para lá rumamos de carro assim que chegamos na capital.

Nossa chegada em Ouro Branco foi digna de um filme de Monicelli – a parentada toda emocionada, alguns personagens às lágrimas, tudo muito excessivo e eu perdido no meio de tantas calças e saias. Foram muitas as apresentações, beijos e abraços e, em breve, eu estava a um canto, junto aos meus cugini – todos muito parecidos e bem cuidados, exceto uma menina mais ou menos da minha idade e altura, pele de índia guarani, cabelos negros e longos, a franja grande caindo sobre os olhos também negros. Pois esta menina que se destacava dos demais foi a única a aproximar-se de mim e soprar no meu ouvido o seu nome – Luíza. E naquele momento abriu-se um clarão e meu coração passou a ter dona.

Nos dias que se seguiram eu procurava por Luiza assim que acordava, ou ela procurava por mim. Nos tornamos os melhores companheiros e não precisamos confessar nossa liga um com o outro – era evidente pelas horas que passávamos juntos, escondendo-nos debaixo da mesa de jantar, correndo pela ribanceira do rio, ou simplesmente parados e quedos vendo a chuva cair no jardim.

Tal proximidade contribuiu para excitar nossos sentidos e aumentar nossa curiosidade. Luiza representava as forças da Natureza, uma Natureza até então desconhecida, para mim, habituado a mar e peixes. Importante mesmo é sublinhar que a tal força era inexorável – como freqüentemente eu testemunhava, seja na hora do banho, seja no momento de dormir – e completava minha maturação sem sentimentos de culpa.

A única coisa que atrapalhava a Luiza e a mim – já que os adultos nos deixavam em paz e concentravam-se nas festas – era uma outra prima, Emília – uma magrela invejosa e arrumadinha que teimava em nos acompanhar sempre que podia. Luiza me dizia para não ligar, para ignorar, mas Emília era realmente um carrapato. Sorte era que, tendo que estar sempre limpa, engomada, calçada e penteada, não podia ir atrás da gente quando corríamos pelo mato ou rastejávamos pelo chão dos quartos ou caímos no rio.

Numa dessas vezes que nos buscava, Emília pegou-nos em flagrante quando, nuzinhos, explorávamos as diferenças de nossos corpos. Luiza, então, ao invés de correr ou esconder-se ou cobrir-se, enfrentou a prima que gritava “vou contar pra todo mundo!”. Rapidamente deu-lhe um tapa no rosto e uma rasteira. E, sentada em cima de Emília, disse “se contar pra qualquer pessoa eu te quebro a cara, te enterro no galinheiro e cuspo em cima até você morrer”. Emília, chorando e tentando arrumar o vestidinho amassado, saiu correndo e sumiu. Enquanto nos vestíamos, Luiza dizia que a prima era invejosa que só. Enquanto eu, aqui comigo, achava mesmo que aquilo era ciúme.

As breves férias passaram muito rápido para mim. Num átimo já estávamos fazendo as malas de volta e nos despedindo depois de um café-da-manhã muito triste e calado, embora alegre e barulhento para os adultos. Todos se abraçaram e se prometeram visitas que nunca ocorreram. Chorei um tico quando abracei Luiza e ela também, para logo sair zunindo sem falar com mais ninguém. Todos riram muito na sua ignorância do que ia no coração da gente. Com alívio, não cheguei a despedir-me de Emília que saiu atrás da prima Luiza tão logo ela se desgarrou de mim.

Nos meses seguintes escrevi ardentemente para Luiza. Era uma dureza conter-me, mas achava que tinha que fazê-lo, já que nossas cartas poderiam ser lidas por outros, especialmente o avô dela. Luiza me respondia e, vez por outra, tinha o cuidado de dobrar uma folha de planta ou uma flor entre as páginas da carta, pedindo-me desculpas por não poder mandar um seixo do nosso rio querido.

O tempo foi passando e fui crescendo, na medida em que as cartas para e de Luiza foram escasseando. Aos onze anos já tinha uma namoradinha e explorava com ela a excitação que parecia mover meus pensamentos e atos. Os pelos do corpo e ereções incontroláveis foram me avisando de novos tempos. Nas conversas com a turma da rua falava abertamente de meus desejos e das nascentes aventuras, que iam de A a Z, sem entretanto parar na letra P, de penetração.

Já havia quase esquecido de Luiza quando recebi, de meu pai, a notícia da morte de meu bisavô e o convite para irmos de volta a Ouro Branco. Num átimo recordei-me de Luiza; meu coração doeu e eu, apesar da tristeza que o luto impunha, vibrei. Iria rever minha amada prima.

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Fomos para o Sul como da primeira viagem – de avião até Porto Alegre e depois de carro até Ouro Branco. Entretanto, nossa chegada não foi motivo de festejos desta vez. Meu bisavô era muito querido e havia deixado uma família numerosa e uns tantos amores dispersos. Ficamos na mesma estância de meus tios-avós, mas desta vez não houve a festança de boas-vindas; somente um jantar que nos prepararia para a noite de vigília.

Em vão procurei por Luíza. Ela só seria vista mais tarde, na capela. Como sempre a um canto; mas, ao contrário do que me falava minha memória, uma bela mulher em formação. Enquanto eu ainda penava com a penugem da minha incipiente barba e vigiava atentamente o surgimento dos pelos pubianos, do peito e das axilas, Luiza ostentava uma envergadura quase completa – ombros, seios, quadris... estava tudo ali, desenhado e à mostra. Eu, envergonhado, me torturava pelas comparações, culpando minha falsa memória. E estava passando por este suplício quando Luiza docemente chegou a meu lado, abraçou-me pelos ombros e deu-me um beijo no rosto.

Ah, o mesmo perfume, o mesmo encantamento... Foi o tempo de beijá-la de volta e já começarem os terços e invocações. Silenciosamente nos separamos, olhos nos olhos, e nos falamos qualquer coisa de nos vermos na manhã seguinte. O resto da noite foi passada entre memórias do meu bisavô sorridente, da minha numerosa família e de um desejo dolorido de voltar logo para casa, para o mar e para a esquina da turma.

Na manhã seguinte fui procurar Luiza, nem sabia para que. Disseram-me, então, que ela havia deixado recado, que me esperava na ribanceira do rio, no mesmo lugar de sempre. Procurei uma sunga, uma camisa e saí de havaina mesmo, evitando pisar na bosta dos cavalos e bois. E cheguei ao nosso ponto de encontro mais rápido do que deveria.

Lá estava Luiza, mais esplêndida ainda que na noite anterior. O contraste entre os cabelos longos e a pele de índia era alguma coisa, ainda mais visto entre as cores da vegetação e a água límpida do riozinho. Luiza estava quase nua, usando somente a calcinha do bikini. Voltou-se e vi os seios grandes e empinados. Senti vontade de descer correndo até ela e abraçá-la. Mas... Logo vi que tinha companhia – lá estava também a prima Emília, magrinha mas muito bonita, quase da mesma altura e volume de Luiza. Resolvi, então ficar escondido e observá-las.

As duas mergulhavam no riozinho, brincavam de atirar água, depois passavam um tempo sentadas na pedra, pegando sol, às vezes deitadas uma no colo da outra. Eram muito lindas juntas, cada qual um tipo de beleza. Ambas se sentiam donas de si e de seu mundo. Poderosas, deram um mergulho profundo; ao subir à tona arrancaram as calcinhas, que atiraram para a pedra. Em seguida abraçaram-se onde dava pé. E se beijaram. Pescoço, ombros, seios... Eu sentia um agudo ciúme, mas seguia observando-as do meu posto, curioso e excitado.

Minhas primas voltaram à pedra e ali, num ritual conhecido delas, começaram a amar-se. De onde eu estava via detalhes dos corpos e de seu movimento, um contra o outro. O carinho lento e depois a voracidade. Luiza dominando Emilia, sobre ela, sugando-a, vampirizando-a, possuindo sua alma; Emilia subjugada, sendo comida, dando gemidinhos e gritinhos quase infantis e eu ouvindo a voz mais grave de Luiza, mandando, virando, espalmando, sendo bruta ou suave. Assim prosseguiram até que gozaram. E estavam repousando nos braços uma da outra quando me mexi e um galho estalou. Imediatamente Luiza deu comigo e pude ver os olhos negros fulgurando por baixo da densa franja, ao mesmo tempo em que riam para mim, cúmplices.

Emília e Luiza ficaram de pé. Emília buscando cobrir-se e fugir do flagrante e Luiza firme como escultura. Sem pestanejar, chamou-me para que viesse e disse para Emilia que não se atrevesse a sair dali. Rapidamente decidimos seguir as ordens da prima, embora eu mancasse até chegar onde estavam e Emilia chorasse um pouco e pedisse para ir embora, tentando convencer Luiza a deixá-la ir. Até que nos juntamos, os três, no mesmo espaço da pedra – Emilia muito constrangida, eu envergonhado e Luiza senhora.

Luiza forçou um abraço dos três e depois, sorridente, pegou no meu pau, como fizera anos atrás. Pude ver nos olhos de Emília o mesmo ciúme que então a levara a ter raiva de mim. Fechei os olhos e toquei os seios de Luiza que, depois de um momento, retirou minha mão e a colocou sobre o seios de Emília, que retraiu-se imediatamente. Criada a cena e postados os peões, Luiza ordenou que Emilia se ajoelhasse e me chupasse. Emilia tentou negar, mas um puxão severo nos cabelos convenceu-a a abaixar-se e a colocar meu pau na boca. Eu e minha prima pagã nos beijávamos na boca enquanto a prima submissa me chupava entre lágrimas. Minha resistência e meus sentimentos viraram fumaça – eu era uma boca e um pau e mexia-me para enterrar-me mais e mais na boca de Emilia.

Nossa senhora percebeu que íamos gozar e deu-nos uma nova ordem. Mandou que Emilia se deitasse de costas e que eu a cobrisse. Nada de pensamentos ou reflexões; nada de camisinha ou preparativos para a boceta de Emilia. Era isso a verdade. Emilia já não reclamava mais, cumpria a ordem para servir à prima Luiza; abria as pernas o mais que podia para facilitar a penetração, esfregava o grelo para tentar molhar-se e recebeu meu pau como se cumprindo uma rotina de ginástica olímpica, enquanto sorvia a boca que Luiza lhe oferecia.

Não pude me conter por muito tempo e fui precoce, embora total. Era minha primeira vez e não sabia mesmo o que fazer em termos de desempenho. Muito menos resistir à paixão intensa, de corpo e alma, que minha prima me despertara. Luiza foi a primeira a rir; depois Emilia, que de algum modo se vingava. Eu ri por último, tímido. Rapidamente saí de Emília, peguei minhas roupas e saí correndo de volta para a casa. No caminho vesti-me e me dei conta de que estava chorando por múltiplas razões.

Passei o resto do dia no quarto. Estava esfolado e machucado. Nada do que me motivara para acompanhar meu pai. A vida me atropelara; minha velocidade era muito pouca para emparelhar com Luiza. Ficara para trás, para sempre. Devia dar adeus a essa paixão que durara quatro anos. Encontrar outra menina; de preferência lá perto de casa, da mesma turma. Uma guria-mar, com jeitinho carioca, que falasse a mesma língua e fosse da mesma natureza. Me torturei por horas até que adormeci. Acordei com um toque insistente na porta do quarto. Era Luiza que queria partilhar a aventura, falar de nós e rir da prima. Não entendia meu estado. Por gentileza e carinho deixei que se acalmasse e lentamente se retirasse, por si só.

Viajamos de volta no dia seguinte. De Luiza só tive um bilhete – “Não deixe de me escrever”. Guardei-o mesmo sem achá-lo importante. O transporte de carro foi monótono e a toda hora meu pai me perguntava o que havia, tomando meu silêncio por algo conectado ao enterro do meu bisavô. Quando chegamos ao Rio, não quis nem saber, peguei minha prancha e caí no mar. Chorava as pitangas de Oxum para Yemanjá.

Como antes, nos escrevemos um pouco. Eu breve, Luiza parlante. Depois não nos escrevemos mais. Cresci, terminei o ensino médio e passei pra faculdade de direito – a Cândido Mendes, no Centro da Cidade. Um dia, depois da aula, parei numa loja de CDs no Paço e ouvi um blues da pesada. Pedi para ver o CD e dei com o rosto de Luiza. Perguntei ao vendedor quem era e ele me disse que era uma voz nova, uma menina brasileira que era tão boa que estava fazendo sucesso nos Estados Unidos. Comprei o CD e fui pra casa. Ouvi inteiro, de uma vez só. Depois ouvi outra vez e outra vez. Até que meu pai pediu que eu parasse com aquilo. Mostrei a capa do CD e ele não falou mais nada. Fechou a porta do quarto e não me importunou mais enquanto eu varava a noite ouvindo as mesmas canções.

03ago10

Para D/ minha prima pagã, que me fez rever minhas memórias.