sexta-feira, 15 de junho de 2012

Réquiem




Estava fazendo meu café matinal quando escutei alguém arranhando a porta. “Hummm....” pensei “... esses cachorros do prédio... que merda”.

Como o ruído continuasse, apaguei o fogo e fui ver o que era. Abri a porta de supetão. Lá estava um sujeito – mais ou menos da minha altura e da minha idade – olhando-me fixamente e esperando ser convidado a entrar, como se eu soubesse quem era.

Fiquei ali parado, com a mão na porta. E ele entrou sem ser convidado. Sentou-se no sofá da sala sem pedir licença e continuou a olhar-me. Até que consegui fechar a porta e perguntar: “Quem é você?”.

“Sou seu anjo da guarda...” respondeu-me ele, com tranquilidade. “Mas, de preto?”, segui na pergunta. “Sim...”, disse-me ele olhando para si mesmo, “... algum problema? É uma cor como outra qualquer... inexiste em si... é um reflexo da luz... onda refletida nesse tecido aqui...” disse-me apontando e puxando o tecido da roupa.

Neste momento notei que era muito parecido comigo, assim filosofando sobre algo sem importância enquanto que a cena se desenrolava.

Puxei uma cadeira e sentei-me diante dele. Com o queixo disse “que?”.

E então ele desculpou-se pela notícia que me trazia e contou-me que eu teria que resolver um dilema. E que esse dilema tratava-se do seguinte: eu teria que escolher entre morrer ou desaparecer de onde estava e seguir vivendo em outro lugar.

A idéia de morrer tem me visitado com constância. Não gosto dela; não gosto de tomar pé da minha mortalidade. Tantas coisas gostaria de fazer... coisas que tomam tempo para aprender e para realmente apreciar. Tocar baixo, por exemplo. E tanto por ver acontecer: meus filhos, seu crescimento. Tantos Natais, tantos encontros com os amigos. Tantos clímaxes... A possibilidade de seguir vivendo era fantástica!

Mas logo em seguida pensei no afastamento que o anjo me propunha em troca da imortalidade. Pensei que eu fazia sentido no meu contexto e como projeção do meu passado; fora dele quem (ou o que) eu seria? E meus entes queridos? O que sentiriam quando de repente não me vissem mais, sem qualquer explicação? Quanta tristeza nesse dilema...

Percebendo meu estado, o anjo passou a descrever o procedimento – o que objetivamente aconteceria, caso eu optasse pela imortalidade. “Você simplesmente desaparecerá daqui, sem nota ou mensagem... pufff” – alargou os braços – “... e aparecerá num lugar qualquer. Lembra do idoso nadador de Ipanema, que desapareceu sem vestígio na semana passada?... ele optou...”.

“Terei família, história de vida? Serei eu com essa mesma cara, essa roupa, esse jeito? E as saudades?” perguntei ansioso.

“Você será você mesmo. Mas não haverá qualquer confusão de contexto. Você será um de nós. Será visto, andará por aí, mas não precisará mais de sobreviver – isto é: comer, dormir, suar. É uma vida inefável mas difícil, confesso. Mas não será melhor que morrer? Olhe para mim: eu sou você amanhã...”, disse-me sorrindo, “... e talvez, algum dia, depois de entender o que é esperado de você, você poderá ter o trabalho que tenho.”

“Mas por que isso? Acontece com todo mundo?”, perguntei. “Vá saber...” respondeu o anjo, entediado ... “... essa chance não é dada a todos, e não sei por que é dada a certos indivíduos... todos fazem as mesmas perguntas; eu mesmo as fiz... não há respostas para isso... é uma questão de aceitar, ou não... aceite, se quiser... não tenho como diminuir o seu transe...”

Calado, fiquei pensando em livre arbítrio e misturando esse pensamento com o sentimento de saudade que começava a tomar-me, doendo-me muito... Ao mesmo tempo, considerava que a imortalidade era o remédio para a profunda angústia que vinha sentindo. Senti-me culpado por pensar fixamente em mim e não na angústia dos outros, quando não dessem mais por mim...

E fiquei ali, olhando para meus pés, sem me decidir, até acordar...

Perov = 15jun12

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