terça-feira, 3 de julho de 2012

Uma história mal acabada


Não adianta. Sou mesmo desconfiado. Sempre fui. E, se me perguntarem, não há razão para isso. Meus pais nunca me surpreenderam com uma paulada na cabeça, ou algo assim do gênero. Nunca fui maltratado por professores ou colegas de classe. Meus amigos jamais usaram contra mim qualquer coisa que eu lhes tenha confiado. Minhas namoradas nunca me traíram. Mas... assim mesmo, sou desconfiado.

Não sei se ser como sou tenha me livrado alguma vez de uma punhalada nas costas. Não sei porque a desconfiança, em mim, não é uma atitude pensada, ou uma estratégica. É da minha natureza.

Toda vez que tenho que falar em público me preparo bastante. E, quando entro no recinto, olho os assistentes nos olhos, um a um, buscando quem irá me puxar o tapete. Mas nada acontece. Incrível como, sendo meio acabrunhado (que é a expressão corporal que uso para despistar os mal-intencionados), consigo despertar uma certa simpatia. A ponto de dizerem-me que tenho “carisma”.

“Carisma”, ora bolas, tem quem tem. Não eu. Nem faço questão de ter. Quero que me deixem em paz. Que não me sigam. A idéia de que especialmente me queiram me transtorna. Quem lhe quer, quer lhe transformar. E, se não consegue, quer vingar-se. Assim, faço questão de não seduzir ninguém, de não encantar ninguém. E, por anos esperei encontrar uma mulher anódina.

Foi assim que conheci Maria (não é o seu nome, mas fica sendo, para o caso de alguém querer usar isso contra mim). Era a aluna menos destacada da classe. Vestia-se como que para esconder-se. Nem querendo conseguia-se imaginar os seus seios, as suas ancas, os seus pés. Teria freqüentado uma igreja evangélica sem despertar qualquer estranheza. Ao menos por sua total sensaboria; já que não seria capaz de dizer “amem”, nem para si; mesmo que o próprio Cristo aparecesse e falasse com ela.

Pois bem. Nosso primeiro encontro teve causa e desenlace que não me recordo – isto prova como foi indiferente. Com o tempo, trocamos um beijo e ela deixou-me tocar-lhe um seio. Sem perplexidade ou qualquer outra reação. Estava escrito que iríamos nos casar.

Tivemos dois filhos. Todos os dois de parto normal; assim como normal foi sua gravidez. À noite dividíamos nossa atenção entre eles e a televisão. Maria gosta do Jornal Nacional e eu gosto de rodar pelos outros canais. Nada dramático. Ajeitávamos tudo organizada e perfeitamente assim, Maria podia tratar de suas coisas e eu dos meus livros e escritos..

Até que ontem à noite, quando eu estava por iniciar minha primeira aula do semestre, sentou-se bem á minha frente aquela garota estranha. Quer dizer, era estranha porque exatamente me chamou a atenção e meu truque de ficar olhando nos olhos não resultou em qualquer diagnóstico.

A garota estranha chama-se Joana (outro nome trocado, se me perdoam). E veio se apresentar ao final da aula, congratulando-me pelo ponto bem dado. Nunca tinham feito isso. Pegou-me no contra-pé. Ao invés de acabrunhado, fiquei animado. Estava também escrito que haveria algo entre nós.

Três meses depois do início das aulas Joana procurou-me para dizer-me que estava grávida. A punhalada atingiu-me sem que eu previsse. “Mas como?”, perguntei. E afirmei, quase batendo com a canela na mesa, “Usamos preservativo todas as vezes!”. E Joana respondeu-me simplesmente “Não sei.”. E saiu.

Na verdade, nosso sexo era selvagem. Pelo menos para mim, que nunca havia conhecido algo distinto da posição missionária com Maria e a cautelosa masturbação de lavatório quando era adolescente. E Joana era sempre a caçadora e eu a caça, que se regozijava quando, ao revés, fincava-lhe a lança bem fundo no profundo mesmo da noite escura do seu entre-pernas. Desculpem-me o arroubo poético, mas era assim que me sentia – um Casmurro convexo, alucinado. Durante uma dessas devia ter esquecido de usar o contraceptivo.

Com Joana, larguei de lado a desconfiança e assim fui compensado. Uma gravidez não encomendada. Uma confusão dos diabos. E um completo despreparo para enfrentar a situação. O que eu falaria para Maria? A pergunta remoeu-me por dez dias, ao fim dos quais, ao entrar em casa, surpreendi-me com Joana e Maria conversando finamente no sofá da sala.

“Desastre!”, pensei. E não me mexi. Até que ambas me chamaram e sentaram-me, bonitinho, na poltrona do papai. Ali mesmo, na frente da TV, só que virado para elas. E aí me puseram a par, tim-tim por tim-tim, do que haviam acordado, que resumirei, poupando os detalhes: (a) Maria ficava com o apartamento e uma pensão que era mais ou menos a integralidade de todos os meus salários de professor e a metade do estipêndio como Procurador da Fazenda Nacional; (b) sobrava-me o apartamento deixado por meus pais (lembrete: despejar o inquilino) e as economias depositadas no banco do Brasil; e (c) o que sobrava para mim seria utilizado para criar meus filhos (até então três) até terminarem a faculdade. Ponto.

Não tugi nem mugi. Saí de casa com um par de ternos, algumas camisas, suficiente roupa de baixo e algumas calças. No dia seguinte aluguei um apartamentinho no Catete. Instalei uma cama grande onde agora passo as horas me exercitando com Joana – que, a final, não estava grávida coisa alguma. Por precaução, sempre que chego em casa olho em baixo da cama e dentro do armário do quarto. Seguro morreu de velho. E eu ainda sou novo.

Pero Vaas = 03jul12

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