Não adianta. Sou mesmo
desconfiado. Sempre fui. E, se me perguntarem, não há razão para isso. Meus
pais nunca me surpreenderam com uma paulada na cabeça, ou algo assim do gênero.
Nunca fui maltratado por professores ou colegas de classe. Meus amigos jamais
usaram contra mim qualquer coisa que eu lhes tenha confiado. Minhas namoradas
nunca me traíram. Mas... assim mesmo, sou desconfiado.
Não sei se ser como sou tenha me
livrado alguma vez de uma punhalada nas costas. Não sei porque a desconfiança,
em mim, não é uma atitude pensada, ou uma estratégica. É da minha natureza.
Toda vez que tenho que falar em
público me preparo bastante. E, quando entro no recinto, olho os assistentes
nos olhos, um a um, buscando quem irá me puxar o tapete. Mas nada acontece. Incrível
como, sendo meio acabrunhado (que é a expressão corporal que uso para despistar
os mal-intencionados), consigo despertar uma certa simpatia. A ponto de
dizerem-me que tenho “carisma”.
“Carisma”, ora bolas, tem quem
tem. Não eu. Nem faço questão de ter. Quero que me deixem em paz. Que não me
sigam. A idéia de que especialmente me queiram me transtorna. Quem lhe quer,
quer lhe transformar. E, se não consegue, quer vingar-se. Assim, faço questão
de não seduzir ninguém, de não encantar ninguém. E, por anos esperei encontrar
uma mulher anódina.
Foi assim que conheci Maria (não
é o seu nome, mas fica sendo, para o caso de alguém querer usar isso contra
mim). Era a aluna menos destacada da classe. Vestia-se como que para
esconder-se. Nem querendo conseguia-se imaginar os seus seios, as suas ancas,
os seus pés. Teria freqüentado uma igreja evangélica sem despertar qualquer
estranheza. Ao menos por sua total sensaboria; já que não seria capaz de dizer
“amem”, nem para si; mesmo que o próprio Cristo aparecesse e falasse com ela.
Pois bem. Nosso primeiro encontro
teve causa e desenlace que não me recordo – isto prova como foi indiferente.
Com o tempo, trocamos um beijo e ela deixou-me tocar-lhe um seio. Sem
perplexidade ou qualquer outra reação. Estava escrito que iríamos nos casar.
Tivemos dois filhos. Todos os
dois de parto normal; assim como normal foi sua gravidez. À noite dividíamos
nossa atenção entre eles e a televisão. Maria gosta do Jornal Nacional e eu
gosto de rodar pelos outros canais. Nada dramático. Ajeitávamos tudo organizada
e perfeitamente assim, Maria podia tratar de suas coisas e eu dos meus livros e
escritos..
Até que ontem à noite, quando eu
estava por iniciar minha primeira aula do semestre, sentou-se bem á minha
frente aquela garota estranha. Quer dizer, era estranha porque exatamente me
chamou a atenção e meu truque de ficar olhando nos olhos não resultou em
qualquer diagnóstico.
A garota estranha chama-se Joana
(outro nome trocado, se me perdoam). E veio se apresentar ao final da aula, congratulando-me
pelo ponto bem dado. Nunca tinham feito isso. Pegou-me no contra-pé. Ao invés
de acabrunhado, fiquei animado. Estava também escrito que haveria algo entre
nós.
Três meses depois do início das
aulas Joana procurou-me para dizer-me que estava grávida. A punhalada
atingiu-me sem que eu previsse. “Mas como?”, perguntei. E afirmei, quase
batendo com a canela na mesa, “Usamos preservativo todas as vezes!”. E Joana
respondeu-me simplesmente “Não sei.”. E saiu.
Na verdade, nosso sexo era
selvagem. Pelo menos para mim, que nunca havia conhecido algo distinto da
posição missionária com Maria e a cautelosa masturbação de lavatório quando era
adolescente. E Joana era sempre a caçadora e eu a caça, que se regozijava
quando, ao revés, fincava-lhe a lança bem fundo no profundo mesmo da noite
escura do seu entre-pernas. Desculpem-me o arroubo poético, mas era assim que
me sentia – um Casmurro convexo, alucinado. Durante uma dessas devia ter esquecido
de usar o contraceptivo.
Com Joana, larguei de lado a
desconfiança e assim fui compensado. Uma gravidez não encomendada. Uma confusão
dos diabos. E um completo despreparo para enfrentar a situação. O que eu
falaria para Maria? A pergunta remoeu-me por dez dias, ao fim dos quais, ao
entrar em casa, surpreendi-me com Joana e Maria conversando finamente no sofá
da sala.
“Desastre!”, pensei. E não me
mexi. Até que ambas me chamaram e sentaram-me, bonitinho, na poltrona do papai.
Ali mesmo, na frente da TV, só que virado para elas. E aí me puseram a par,
tim-tim por tim-tim, do que haviam acordado, que resumirei, poupando os
detalhes: (a) Maria ficava com o apartamento e uma pensão que era mais ou menos
a integralidade de todos os meus salários de professor e a metade do estipêndio
como Procurador da Fazenda Nacional; (b) sobrava-me o apartamento deixado por
meus pais (lembrete: despejar o inquilino) e as economias depositadas no banco
do Brasil; e (c) o que sobrava para mim seria utilizado para criar meus filhos
(até então três) até terminarem a faculdade. Ponto.
Não tugi nem mugi. Saí de casa
com um par de ternos, algumas camisas, suficiente roupa de baixo e algumas
calças. No dia seguinte aluguei um apartamentinho no Catete. Instalei uma cama
grande onde agora passo as horas me exercitando com Joana – que, a final, não
estava grávida coisa alguma. Por precaução, sempre que chego em casa olho em
baixo da cama e dentro do armário do quarto. Seguro morreu de velho. E eu ainda
sou novo.
Pero Vaas = 03jul12
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