sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

Um Desenho Para Você

Um Desenho Para Você

Desde pequeno meus pais gostavam muito de meus desenhos. Estimulados pelos comentários de minhas professoras, compravam material toda vez que eu pedia e me deixavam em paz para criar o que me viesse à cabeça. Depois, orgulhosos, mostravam minhas obras de arte a vizinhos e parentes.. Alguns desses capolavori tenho até hoje, pendurados em uma das paredes do meu quarto.

Passei por muitas fases criativas. Cheguei mesmo a desenhar de monstros em guerra até enormes cenas de bacanais – devidamente escondidas dos olhares curiosos dos meus pais. Fiz histórias em quadrinhos seriadas, com heróis fantásticos, que faziam muito sucesso entre meus colegas de colégio. Alguns de meus desenhos foram expostos em concursos municipais e até regionais. Cheguei mesmo a ganhar alguns prêmios.

Na adolescência segui com os desenhos. Jogava futebol, passeava, ia a festinhas e, é claro, estudava. Mas meu aconchego era minha escrivaninha e a coleção de papéis, blocos, lápis e pastéis. Nesta época passei a desenhar livrinhos de sacanagem, sob a influência do grande mestre – Carlos Zéfiro – que hoje, merecidamente, é publicado em coleções luxuosas. Vendia ou alugava alguns deles no colégio até que fui pego. Meus pais foram chamados à diretoria e, de castigo, tomaram-me tudo. Fiquei quase seis meses, louco da vida, sem desenhar. Mas, de quebra, conheci Julieta.

Julieta era uma menina linda, filha de um vizinho, que logo simpatizou comigo. Freqüentadora do mesmo colégio, sabia da minha fama de desenhista sacana. Riu muito quando me contou que tinha curiosidade a meu respeito. Com naturalidade, começamos a sair e um dia, numa seção de cinema, apalpei seus peitos e trocamos um beijo de língua. Uma semana depois me espantei quando ela pediu-me para desenhar-lhe um nu. Tímido (e, devo acrescentar, idiota), recusei. E, a partir daí, nosso namoro promissor veio a baixo.

Mais adiante conheci a Gilda, com quem, a final, me casei. Gilda não gostava muito das minhas histórias, mas foi com ela que transei pela primeira vez. Nada muito especial, a não ser porque a transa aconteceu momentos depois que concluí um nu dela, a pedido meu (que deixara de ser idiota fazia tempo). Nosso namoro, ao contrário do que acontecera com Julieta, foi para frente. E só fui ver outra mulher despida quando entrei para a Escola de Belas Artes.

Meus pais, apesar do tanto que me incentivaram, ficaram enormemente surpresos – e decepcionados – quando anunciei que iria entrar para a ENBA. “O que é isso, meu filho!?...” reagiu meu pai “... uma coisa é ser artista amador... outra é ter vida de artista... pensei que seguiria outra profissão... não precisava ser dentista, como eu, ou professor universitário, como sua mãe... mas pintor?!” Além de decepcionados, estavam bastante preocupados com meu possível envolvimento com os “bandos de desordeiros” que faziam passeatas e “propagandeavam o comunismo na Cinelândia”.

Bem, enquanto eu começava a me divertir com outras técnicas e materiais e a brincar com uma Leica emprestada, resolvi fazer concurso para fiscal da Fazenda Nacional e assim, aos vinte e um anos, tinha um empreguinho garantido. Fizera meu pai feliz e ainda tinha como planejar casar-me. O diabo eram os atrativos da Escola: minhas colegas puxavam-me para um lado e para o outro e meus amigos não me deixavam em paz na hora do chopp no Amarelinho. Além disso, havia a Turma do Parque Lage e os retiros na Aldeia de Arcozelo. Foram dias passados entre uma criativa sacanagem, engajamento político e namoros amassados com Gilda. E, entre essas tantas venturas, lá tinha eu que equilibrar-me no emprego, tomando a bênção do chefe e espremendo contribuintes.

Terminei o curso e casei-me. Fui morar na Glória e comprei um Brasília de segunda mão. Gilda não via com bons olhos minhas amizades da ENBA; tinha um ciúme que se pelava das modelos – que acreditava serem dezenas de putas decadentes – e uma vez apareceu de repente numa aula de pintura, quando pintávamos o nu de uma pobre modelo idosa. Também me olhava de lado quando chegava tarde dos bares. Atribuía meus atrasos a farras que me imaginava freqüentando. Achava minha vida digna de um romance rocambolesco. Eu, entretanto, amava Gilda, e a ela era absolutamente fiel...

Minha estabilidade no emprego, a amizade com os chefes, os cargos em confiança, os triênios, qüinqüênios e tantos aumentos mais – e, principalmente, o fato de não termos filhos – nos permitiram economizar, mudar para Copacabana, termos o carro do ano e viajarmos uma vezinha ou outra para Portugal, onde minha mulher tinha parentes. Gilda, aos poucos, foi-se dando conta da vida fosca que eu levava e deixou-me em paz com meus desenhos, minhas aquarelas e meus óleos. Um dia lembramos do nu que eu pintara dela; ficamos excitados com a lembrança e rolamos apaixonadamente pelo chão. Esta foi a melhor transa que me lembro de termos tido.

Fomos envelhecendo, um dia me aposentei, e noutro Gilda se foi, de repente, num AVC fulminante. Foi muito triste; mas teria sido um desastre conviver com minha mulher com seqüelas. E foi assim que empacotei minhas coisas, vendi meu apartamento e fui morar no prediozinho da Tijuca. Eu e nossa empregada de tantos anos, Dna. Esmeralda – uma quituteira formidável, de um mau-humor extraordinário.

Logo que cheguei à minha nova casa, no edifício Doralice, fui fazendo conhecidos. Os tijucanos guardam aquela maneira gentil e bondosa de outrora; dizem bom dia a inteiros desconhecidos e se oferecem para ajudar sempre que percebem uma necessidade. Também são prolixos conversadores e foi assim que travei conhecimento com o Rubélio – também como eu, um funcionário aposentado da Fazenda. Rubélio, como bom pernambucano acariocado, sabia de todas as donas que eram boas ou não boas do prédio; também conhecia todas as histórias, desde as mais inocentes às mais escabrosas, envolvendo patrões e serviçais pegos em flagrante. Contou-me das separações de casais novos e antigos assim como, com a mesma tranquilidade, descreveu-me, um a um, dos suicídios ocorridos no prédio. Com particular precisão falou-me do vovô do 404 que, pego em flagrante com a boca nos haveres da netinha, atirou-se pela janela E foi numa de nossas conversas, durante um jogo de damas no playground, que Rubélio soube que eu era artista.

“Epa!” me disse “tens que fazer um retrato meu, ó pá”. Rubélio gostava de imitar o sotaque português toda vez que queria ficar entre jocoso e sério – sinal de que não acreditava, ainda, nas minhas habilidades. Para desafiá-lo, respondi-lhe que sim; e para molestá-lo pela desconfiança, acrescentei que o faria quando me desse na telha. Rimos muito, acompanhamos a mulata do 201 passar, rebolando, e encerramos a partida sem xeque.

Dias depois, guarnecendo um bloco de papel Canson e meu estojo de lápis e carvões, fui á casa do Rubélio,. Quando meu amigo deu-se conta do propósito da visita, pediu licença, afeitou-se, penteou-se e voltou envolto em algo que detectei ser um rançoso Old Spice. Sentou-se muito digno à mesa de jantar e disse-me “Pode começar!”. Comecei e terminei rapidamente. Rubélio, surpreso e incrédulo pelo curto tempo que eu demorara, pegou-me o bloco das mãos e mais surpreso ficou com o resultado – “Está ótimo!... está ótimo”, foi repetindo enquanto aumentava a voz. Pôs-se de pé, apertou-me a mão e disse, agradecido, “Está ótimo!”, mais uma vez.

Rapidamente a notícia de que eu desenhava correu pelo prédio. E da próxima vez que estava tomando sol no playground apareceu-me a primeira cliente – uma senhora cheinha de meia-idade, que disse chamar-se Eva, residente do 401. Debalde disse-lhe que não era profissional e que não desenhava mais. Eva fora convencida por Rubélio a fazer-se retratar por mim. E tanto insistiu que lá fui eu à casa buscar o bloco e o estojo. Quando voltei ao playground vi que Eva estava agora acompanhada de duas vizinhas do prédio, interessadas em assistirem ao meu “processo criativo”. Percebendo a arapuca, anunciei que tudo aquilo era uma brincadeira e que eu estava abrindo uma exceção para Eva. Só que Eva, quando notou que me esquivava, saltou do banco e disse que me pagaria pelo retrato; e, diante do meu espanto, mostrou três notas de cem. Não pude fazer nada; dei-lhe algumas instruções e comecei.

Para encurtar a história: os três desenhos ficaram muito bons e faturei 900 reais naquela manhã. E daí por diante choveram clientes. Só que tive que aumentar os preços, fazer uma tabela e, ainda, passar a vestir-me de maneira adequada: às vezes um gorro à Milton Nascimento, às vezes a fivela do cinto ao lado, às vezes uma camisa azul-zuarte, mas sempre de jeans e sandálias ou tênis. Também passei a atender em casa, de sorte que tive que mudar as coisas de lugar, criar uma atmosfera, armar cavalete, pendurar panos de fundo, tudo sob o olhar de censura de Dna. Esmeralda. Algumas vezes pintava óleos, retratos de família, trabalhos que me custavam dias. A tabela, então, saltava alguns dígitos. Estranhamente, entretanto, clientes não me faltavam. Havia, de fato, um mercado para retratos não fotográficos naquela simpática região suburbana. E aí a coisa subiu outro degrau.

Foi o Rubélio mesmo que me sugeriu atender às madames na casa delas. Segundo ele me confiou, piscando os olhos, era uma forma de unir o útil – a grana, certamente – ao agradável – a possível atracação das modelos. Eu sentia uma grande saudade de Gilda, mas também entendia que, possivelmente, estava entrando em meus últimos anos de atividade. Logo fui seduzido pela idéia de Rubélio que, graças às suas amizades na Receita, arranjou-me um suprimento industrial de pirulinhas variadas.

E, por coincidência ou não, foi Eva minha primeira cliente “a domicílio”. Abriu-me a porta, simpaticona e risonha, vestindo uma bata cômoda e florida. Puxou-me pela mão e me fez sentar na melhor poltrona enquanto acomodava-se no pufe à minha frente. Estava excitada com a idéia de ver-se retratada num óleo e pegava minhas mãos entre as dela enquanto descrevia a pose que desejava. De repente ficou de pé e mostrou-me o que desejava. Não estranhei que fosse um meio-nu mostrando-lhe os ombros e as coxas benignas. Disse-lhe que sim e ela pediu-me licença para dar alguns retoques na roupa.

Enquanto esperava por Eva foi passeando pela pequena sala de estar. E lá vi, a um canto, um piano de parede. Sobre ele um par de retratos e um bordado nordestino que caía em “V” sobre a caixa do instrumento. E então tive uma epifania: seria muito bom agregar algum elemento simbólico aos retratos que, daí por diante, faria. E, quando Eva retornou, cuidadíssima como uma boneca oriental, falei-lhe sobre minha idéia e ela gostou. Fiz, então, o esboço do retrato, conforme Eva pedira e eu ampliara. Concluído o primeiro desenho, mostrei-lhe e ela gostou muito. Pediu alguns minutos de descanso e buscou algo para bebermos.

Ficamos ali, num sofá, conversando, até que, sem prevenir-me, Eva debruçou-se sobre mim e deu-me um beijo enquanto desnudava um seio e colocava minha mão sobre ele, apertando-a. Tive uma ereção incontornável e, em pouco, fiquei de cuecas. Eva dançava nua à minha frente e dizia-me que iria dar um presente. Sentou-se ao piano, abriu-o e começou a tocar uma sonata. Aproximei-me e apertei-lhe de novo o seio e ela devolveu-me a carícia presenteando-me com uma felácio de alta técnica. E, ao ver-me completamente ereto e envernizado, levantou-se e pediu-me que sentara em seu lugar no piano. Logo sentava-se sobre mim, empalando-se gostosamente e retomava o controle do teclado. Enquanto ia-me devorando, perseguiu a tal sonata até gozarmos. Quando voltamos ao sério disse-me que Chopin, sua mescla de romantismo e sensualidade, dava-lhe uma intensa excitação. Recompôs-se e recompus-me. E demos por encerrada a seção daquele dia.

Verdade é que o óleo de Eva ficou ótimo. Seu corpo cheio e curvilíneo como o de uma Vênus de Rubens, ficou ressaltado e ganhou frescor com o piano ao lado. Tivemos várias seções antes de ter o quadro pronto. E várias transas malabares. Estou seguro que Rubélio sabia de tudo, já que piscava-me os olhos a cada momento que cruzávamos por Eva dentro e fora do prédio.

Com o sucesso do óleo “Eva e Seu Piano”, recebi outras tantas encomendas vindas do Doralice e da vizinhança. Embora eu não tivesse a experiência mercadológica da Turma do Parque Lage, aperfeiçoei minha pegada, exigindo longas conversas com as modelos para poder transmitir “toda a emoção e todo o sentimento” para as telas. Havia que visita-las algumas vezes, saber exatamente o cenário e os símbolos que iria usar. Agia como contra-regras, cenógrafo, iluminador, roteirista e editor – um verdadeiro metteur en scène. E as trepadas cinematográficas se sucediam; saborosas trepadas, preferencialmente vespertinas, quando o sol doura as carnes e o bolo de fubá com café é do melhor sabor.

E eis que, certo dia, nem bem acordava, tocam à minha porta e, quando abro, dou com a mulata do 201. Sinceramente? Era um quadro, emoldurado pelo marco da porta. E eu só pude dizer “Sim?”. E ela respondeu com um blá-blá-blá longo, em que misturava várias informações, questionamentos e impressões que pude resumir, amarfanhadamente, que se tratava de um pedido para fazer-lhe um retrato. “Entre, entre”, convidei-a, “Sente e espere um minuto”. Fechei a porta atrás dela fui luzir-me como podia: lavei o rosto, escovei os dentes, vesti as sandálias e voltei à sala – que agora era mais um atelier que uma sala.

Comigo à frente dela, Dora apresentou-se. “Dora de Doralice, mas aí fica parecendo o edifício e prefiro que o senhor me chame de Dora...” “Claro!”, respondi, “... principalmente porque você não se parece nada com um edifício!” e percebi, pelo sorriso, que ela entendeu minha referência oculta às suas curvas. “Me chame de Carlos – esse é meu nome – e esquece o ‘senhor’”. Resumindo a conversa, que não foi das mais notáveis, acertamos que eu iria fazer um retrato de Dora e nossa parceria seria um segredo. Posterguei todos os demais compromissos da semana – inclusive com duas novas clientes, para dedicar-me exclusivamente a pintar Dora, nos horários em que ela podia dar uma escapadela para posar.

Sempre gostei de ver mulheres trabalhando. Até Dna. Esmeralda eu gostava de olhar. Por vezes observava, entre comovido e excitado, empregadas que arrumavam a casa, lavavam e passavam a roupa, cuidavam da janta, mourejavam enfim. Silenciosamente tomava apontamentos mentais de seus movimentos na labuta, imaginando-me um Lautrec no Moulin Rouge. E, quando podia, tocava suas mãos louvando-lhes a beleza e a resistência. Era essa a referência que gostaria de fazer no quadro de Dora. Mas ela não quis. Preferia ser registrada num momento de descanso, ou numa praça, passeando entre flores, ou mesmo numa praia deserta, observando o mar. Finalmente, concordou com a inclusão de um e outro pequeno elemento surreal apenas para satisfazer-me.

A tela chamou-se simplesmente “Dora”. E registro que, se bem que muito quisesse, não a comi. Não se come uma musa – que deve permanecer inalcançável e etérea. Sei que noventa e nove por cento dos artistas plásticos ou não plásticos discordariam de mim, eis que comeram devotada e antropofagicamente todas as suas musas e diriam que sou um idiota por almejar o Belfort Duarte do bom comportamento em campo. Mas assim foi: tomado de um grande fervor, sequer tentei comer a Dora; e Dora, um tanto decepcionada no início – pois estava acostumada a ser cantada, e assim valorizada, até pelo bispo da sua igreja – entendeu por fim que o valor que lhe dava transcendia a todo o mais.

Dora escondeu a tela, mas não tanto. Outras empregadas foram aparecendo. Não muitas e não do prédio e da vizinhança. Algumas delas exemplos de nossa beleza local, de pele lisa e lustrosa “linda como a pele de macia de Oxum”; algumas delas opulentas como as mulatas do Di Cavalcanti; algumas simples santas da pele mulata, discretas, acanhadas e avessas ao meu olhar, mas curiosas... E assim outros nus simbolistas foram sendo pintados para uma clientela que não me pagava – simplesmente deixava as telas comigo até um momento futuro, quando pudessem levá-las. Dna. Esmeralda, pela primeira vez em muitos anos, sorria-me não sei porque. E até dela pintei um singelo retrato – que deixei exposto na melhor parede da sala.

Ocorre que um dia Eva e Rubélio me procuraram com uma grande notícia: a dona de uma galeria da Barra da Tijuca havia gostado do óleo de Eva e queria entrar em contato comigo para ver outros trabalhos. Meio blasé, disse a eles que tudo bem e, dias depois, recebi a visita de Cybele Utsch – que mais adiante se tornaria minha amiga, marchand e agente; e só não se tornou algo mais porque sua preferência atendia pelo nome de Josi. Cybele é uma senhora agradabilíssima que se dá com meio mundo do dinheiro novo do bairro. Entrou em minha casa como se fôssemos amigos de anos. E depois de referirmos algumas amizades cruzadas, perguntou-me se tinha algo para mostrar. Fui sincero: os únicos trabalhos que tinha em casa, além das telas por terminar, eram os das empregadas – uma série muito específica, quase repetitiva. Cybele insistiu para vê-los e mostrei-os. Ficou muito impressionada; e comentou-os como um excelente crítico de arte. E terminou por propor-me uma exposição para dali a um mês. Exatamente com as telas que vira. Aceitei. Na saída, ainda disse-me: “Não esqueça de trazer aquele lá, da parede...” e apontou para o quadro de Dna. Esmeralda “... é, de longe, o melhor de todos”.

A exposição foi muito bem preparada por Cybele. O jogo dos quadros com as tapadeiras e a iluminação dirigida ressaltava a profundidade e as cores das minhas mulatas. No dia do vernissage eu estava muito nervoso e devo ter tomado umas três doses de uísque enquanto me vestia. De modo que quase tropecei quando saltei do táxi na porta do shopping onde ficava a galeria. Restabeleci-me e entrei. A galeria, que ficava um pouco distante das portas automáticas, resplandecia. E logo que cheguei fui saudado por Cybele que, sempre com Josi por perto, apresentou-me a uma legião de seus amigos e jornalistas. Tomei mais duas taças de vinho branco e entrosei a conversa com várias admiradoras, entre elas Eva e um par de outras clientes. Estas reclamaram muito por eu não ter solicitado um empréstimo de suas telas. Eu sabia do risco que havia em desfavorecer a clientela em prol das mulatas; mas foi um passo bem pensado – evitei problemas e ainda ganhei simpáticas resenhas, que elevaram-me a um certo grau de pintor engajado.

Saí da galeria em estado de graça. Durou pouco: dia seguinte, encontrei-me com um Rubélio zangadíssimo, que nem me permitiu cumprimenta-lo. Espinafrou-me pelo tratamento indiferente que dera aos amigos que amealhara para levar ao vernissage, principalmente seus familiares, recém chegados do Recife. Adiantou nada que me desculpasse, que atribuísse a grossura ao nervosismo, à bebida. Embora não me cobrasse qualquer coisa, Rubélio sentia-se parte do meu sucesso já que, sem a intervenção dele, eu jamais teria iniciado minha “carreira” no Doralice. Percebi isto quando despediu-se sem sequer dar-me um abraço.

Todos os quadros da exposição – exceto o retrato de Dna. Esmeralda, pertencente à minha “coleção particular” – foram vendidos na primeira semana. Cybele telefonava-me sem parar, lendo-me as resenhas que eu já havia lido, e falando de planos para entrevistas e montar outra exposição. Mas eu não estava feliz – havia pisado na bola com meu melhor amigo, sem dúvida...

A coisa não parou aí: alguns dias depois me apareceu lá em casa a mulata do 201, a Dora, acompanhada de outras duas mulatas retratadas por mim. As duas haviam sabido da exposição e queriam os quadros de volta e me diziam que as outras amigas queriam o mesmo. Foi um desacerto, no qual Dora não ficou do meu lado. “Uma revolta na senzala!”, pensei mas não disse.. E, depois de muita negociação e ameaças, concordei em pagar quinhentos reais a cada uma pelo tempo que posaram. Que falassem com as outras e que viessem todas receber e estávamos quites. E assim foi feito – uma a uma das empregadas recebeu os quinhentos reais e assinou um recibo. Tudo sob o olhar carrancudo de Dna. Esmeralda que, dado o lavor de testemunha, recebeu mil reais pelo seu retrato.

Mais um par de dias passaram e recebi a visita de Rubélio. Constrangido, pois me havia dado as costas, apresentou-me sua sobrinha-neta do Recife, que havia ido ao vernissage, conhecido meus quadros e queria saber se eu estaria disponível para dar-lhe algumas aulas. Foi assim que conheci Maria Vitória – minha amoreca. Procurei ser neutro quando assenti em dar aulas à menina. Mesmo assim Rubélio fez-me uma cara de “veja lá” quando foi-se. Marcamos a primeira aula para o dia seguinte de manhã, quando a luminosidade do atelier era melhor.

Pontualmente recebi a visita de minha nova e única aluna. Mostrei-lhe alguns trabalhos em desenvolvimento e pedi que sentasse, enquanto buscava um café. Quando voltei Maria Vitória estava de pé, examinando um livro que eu deixara aberto na mesa de jantar – uma novela qualquer da qual não recordo o nome. Fechou-o e voltou a sentar-se. Tomou o café que lhe ofereci e, como nada dizia, resolvi dar-lhe um panorama de minha “vida e obra”.

Ouviu o que eu falava com evidente educação, sem atalhar-me – o que, na verdade, entendi como mostra de irreprimível tédio. Ao terminar minha prosódia, senti-me vazio, presunçoso e lamentavelmente indefeso. Percebendo meu embaraço, Maria Vitória sorriu-me e começou a a discorrer pela rica vida que levara. Muito cedo, decidira que desejava trilhar o “caminho das artes”, algo que “mexesse com os sentimentos, com a sensibilidade” das pessoas. Sem focar exatamente em alguma profissão, entrara para a FAUPE porque gostava de design, arquitetura e pessoas, mas até aquele momento não achara o que realmente desejava fazer. Gostava de desenhar e isso a levara a aceitar o convite do tio para meu vernissage. Estava sem fazer muita coisa no Rio e ter algumas aulas comigo poderia ser uma boa idéia. Arrematou essa história dizendo-me, sem qualquer motivo aparente, a não ser para rir, que havia me visto tropeçar na entrada do shopping. E de fato riu. Mais do que o conteúdo da fala de Maria Vitória, fiquei atento à sua voz molhada, saborosa,lindamente arrematada pelo riso mais cristalino que até então eu ouvira. Minha aluna ria com os dentinhos pequeninos, com os grandes olhos puxados, com o nariz arrebitado e com a expressão facial mais sapeca que um homem poderia agüentar sem rir também.

Daí por diante, foi tudo mais ou menos fácil. E difícil. Lá estava eu, sentindo-me um velho safado, aguardando os minutos que faltavam para a chegada de Maria Vitória. Os trabalhos seguiam inacabados, com as clientes reclamando, enquanto eu me esmerava na programação das aulas e da execução da didática. Revisitei tudo o que pude do material da ENBA, comprei novos (e caros) livros de História da Arte, emprestando-os sem volta à minha aluna. Dna. Esmeralda nada falava desse meu transe juvenil; bastava seu olhar de censura e descuido estudado com que esbarrava em mim pela casa. E um dia Maria Vitória voltou para Recife, sem me dar sequer a chance de declarar-me...

Ah, que dias passei. Sem a musa, foi-se a inspiração. Recusei novos trabalhos e atrasei ainda mais a conclusão dos que estavam encomendados. Então, quando eu estava no fundo desta tristeza, apareceu-me Cybele com Josi pelo braço. “Querido...”, disse-me ela, “... tenho uma ótima notícia e um favor pra pedir...”. E engatou, entrando pelo atelier adentro, “Primeiro a notícia, dois pontos: consegui que você fosse convidado para uma coletiva em Miami... junto com o Romero Brito e outros tantos que fazem sucesso por lá...”.

Eu não estava muito animado com a tal notícia, para desânimo de minha agente. Primeiro, porque continuava deprimido com a partida de Maria Vitória; depois porque lixava-me para esse público que gostava tanto da porcaria de Romero Brito e sua temática infantil repetida ad nauseam. Vendo minha reação, Cybele pegou-me o rosto com as duas mãos e procurou animar-me: “Querido, será que você não vê? É a rota do sucesso... primeiro Miami, depois o Mundo!... Muito grana para você... e para mim...”. Tive que concordar. Discutimos, então, como faríamos para montar a minha parte, que quadros (que eu não tinha) a enviar. E o prazo era curto. “Dá-se um jeito!” Finalmente eu disse, já imaginando como faria. “Ótimo!” respondeu-me alegre Cybele “Então agora o pedido... Quero que você pinte um nu da Josi para mim!”

Josi também foi tomada de surpresa, e deu um passo atrás, resistindo à idéia. Mas Cybele convenceu-a, com firmeza, que queria muito tê-la pintada pelo melhor retratista que conhecia – eu. Faltava me convencer. E não durou muito e eu já estava conversando com Josi para ver como prosseguiríamos. Cybele, vendo que tudo se acertava, não quis perder a oportunidade: “Por quer não começamos agora?”. Assim foi feito.

Sob instruções de Cybele, Josi despiu-se em meu quarto e voltou enrolada um lençol branco. Eu já estava sentado diante da prancheta, tendo à minha frente uma folha de canson. E então minha amiga desnudou a sua amiga. Meus olhos se arregalaram e olhei fixamente para o mais belo par de seios que eu havia visto. Com os mamilos reagindo ao olhar, Josi instintivamente cobriu-os com um braço enquanto que, com a mão livre buscava puxar para si o lençol, escondendo o também belo Monte de Vênus. Diante do ocorrido e, para não arriscar um desentendimento, disse às duas que achava que o nu deveria ser assim mesmo: com Josi cobrindo os seios com um braço e com algo cobrindo-a dos pés à cintura. E passei a bosquejar a primeira prova.

As duas amigas ficaram muito satisfeitas com o desenho, que mostrava Josi como uma deusa grega, recatada como num clássico censurado, tendo apenas uma cor azulada que vazava para amarelo, aos pés da figura, como pano de fundo. E após algumas seções o óleo estava praticamente pronto, com Josi e Cybele muito felizes com o resultado. Tão felizes que resolvi presentear Cybele: no alto da tela, à direita, pintei uma águia de asas abertas, em pleno vôo. As duas agradeceram e, em mais ou menos uma semana, passado o período de secagem e verniz, levaram a tela, abraçadas.

Pintar cinco quadros deu-me mais trabalho conceitualmente do que propriamente pinta-los. Depois das aulas com Maria Vitória eu estava já cansado de pintar retratos, fosse de que jeito fosse. Havia outros cenários que me emocionavam tanto quanto a figura humana que eu queria desenvolver. Temas maiores como a solidão, a indiferença das coisas às quais atribuímos uma pátina pessoal, a luminosidade e os contrastes da Natureza e muitos outros leitmotive ainda não explorados por mim, assim como outras técnicas que gostaria de desenvolver além do desenho e da pintura a óleo. Cybele, entretanto, sentindo o odor de uma possível postergação, convenceu-me a manter-me no universo dos retratos e trouxe-me, uma a uma, as modelos das novas telas – que ficaram dentro do padrão usual de meus trabalhos.

Não fui a Miami, mas soube, por Cybele, que deveria ter ido. Com todas as minhas telas vendidas, algumas para não-brasileiros, minha pequena mostra podia ser considerada bem-sucedida. E de fato foi. Alguns meses depois eu expunha numa individual em São Paulo. Mais sucesso de público do que de crítica, recebia encomendas de toda a parte, principalmente do interior de São Paulo. Até que passei a receber encomendas de Brasília, do Nordeste, do Sul e de Mato Grosso. Viajei muito e meus preços subiram vertiginosamente. Também passei a vender em Nova Iorque e em outras cidades da Flórida, como Orlando e Palm Beach – onde logrei retratar um ícone do dinheiro velho. Com o sucesso, minha libido era constantemente gratificada, mas minha alma permanecia vazia.

Também com o sucesso mudei-me para uma cobertura na Barra. Aposentei Dna. Esmeralda – que cobrou-me, de novo, pelo quadro que pintara dela. Conheci uma prostituta entrada nos trinta no Quatrocentos, a quem tornei minha governanta e principal fornecedora de companhia. Como era discreto e mais ou menos silencioso, o prédio tratava-me bem e fornecia-me os serviçais que necessitava. Com a proximidade da praia, seguia o conselho de um bom Pai-de-Santo e lá rezava com fervor a Oxumaré.

E, estando tudo assim no seu devido lugar, eis que me aparece, de novo, a Maria Vitória. Não me dera conta, mas haviam passado três anos desde que nos conhecemos. E ela estava linda como nunca. Bateu à minha porta numa manhã de domingo de Verão, quando eu acordava da farra do dia anterior. Logo que recebi o chamado da portaria e mandei subir a ex-aluna, tratei de mandar embora, de qualquer maneira, as três moças que dormiram comigo. De nada adiantou que as Três Graças se fossem. Maria Vitória, assim que entrou em casa, percebeu, pelo perfume misturado à desarrumação, que eu tivera uma noite daquelas. E sorriu com os olhos gatos, compreensiva, estendendo-me um pacote. Desfiz o embrulhinho e, feliz, dei com o delicioso Bolo de Rolo da Casa dos Frios.

Durante aquele Verão suspendi o contrato com a governanta. Maria Vitória passou morar, praticamente, na minha casa. As aulas de desenho não se repetiram. Ao invés delas, tivemos longas conversas sobre literatura, cinema, arquitetura; ou longos passeios silenciosos pela beira da praia. Minha amoreca havia deixado a faculdade de arquitetura e agora decidia-se pela fotografia ou pela publicidade. Também se havia tornado membro da Juventude Petista, engajando-se na luta pelos programas do Nordeste, particularmente na vertente do Fome Zero. Atribuía sua participação política à expansão do seu universo. Certo dia trouxe-me uma coleção de textos curtos: contos, exercícios auto-biográficos; diálogos; e poemas. Fiquei entusiasmado, mostrei-lhe meus escritos e nossas conversas atingiram outro nível.

Íamos ao cinema, ao teatro, voltávamos animados, criticando o que havíamos visto; líamos juntos, recitávamos, ouvíamos música e dormíamos santamente separados quando ela ficava lá em casa. Além de encantar-me durante nossas conversas, minha amoreca me divertia. Tinha rompantes de alegria, contava-me casos e, de súbito, ensaiava as piruetas de um frevo inventado. Havia, entretanto, algo que me deixava maluco: Maria Vitória gostava de tomar banho nua na piscina do terraço. E gostava mais ainda de me ver sem-jeito, tapando os olhos e fugindo para a sala. De um canto eu a observava: o corpo esbelto, mignon, os pequenos seios, as nádegas, as coxas quase atléticas e a fileira de pelinhos quase transparentes que descia pelo ventre, do umbigo à pequena moita que lhe guardava a boceta – esta eu nunca via, mas desenhava-a na imaginação!

Houve um dia que Maria Vitória pediu-me que a retratasse e logo, fazendo que despia-se, foi perguntando-me como queria que posasse. Eu respondi que sim, impedindo-a de ir adiante com seu plano de nudez, mas que preferia ir desenhando-a na medida em que tivéssemos vontade. Passei a andar sempre com material de desenho e ia retratando-a em todo momento que achava adequado, inclusive na praia e nos passeios pelos parques da cidade. Esqueceu do início da conversa, e repetiu, um dia, o pedido para que a desenhasse nua, plantando bananeira, os bicos dos pequenos seios apontando para frente, em ângulo reto. Fingi que a atendia. Esta era uma outra forma de observá-la sem ficar embaraçado. Sentia mais ou menos o que o fotógrafo sente ao ter um trabalho desta natureza. Transferir minhas observações para a tela foi um outro assunto. O croqui serve de base para as formas, mas a definição das cores, a iluminação e a textura só na hora do óleo é que se concretizam. Foi bastante trabalhoso e eu não conseguia terminar a empreitada.

Num belo dia de fevereiro, como haveria que ser, Maria Vitória ensaiou novamente um frevo e, quando cansou, anunciou-me que iria embora. E que não sabia quando voltaria. Como se isso fosse um evento quotidiano em nossas vidas, almoçamos e bebemos, e à tarde fomos à praia, de onde vimos o pôr-do-sol. Voltamos para casa e entreguei-lhe sua tela, finalmente concluída. Eu decidira mostrar minha musa em quatro momentos: sentada à mesa do café-da-manhã do terraço, tendo ao fundo a jardineira com flores; sentada na praia, avistando o horizonte; varrendo a casa bagunçada; e deitada na areia, vista da cabeça para os pés, a fileira de pelinhos surgindo do umbigo e caminhando em direção ao Monte de Vênus escondido pela calcinha do biquíni verde. Não havia o nu da bananeira, mas Vitória ficou muito feliz. E, ao mesmo tempo triste. Ao título que propus – “Quatro Janelas para Vitória” – contrapôs “Um Desenho Para Você”. Assim que ela pousou a tela, começamos a namorar com naturalidade. Nos beijamos, nos abraçamos, ficamos nus. Primeiro eu quis ir por cima, para me ver entrar em Maria Vitória; depois ela veio por cima – para fincar-se definitivamente em minha alma. E depois adormecemos. Quando acordei, preparei o café e o servi no terraço. E Maria Vitória foi-se, carregando sua tela.

Caí em prostração. E depois chamei de volta a governanta. Mas nem as mil putas selecionadas que ela me trouxe – e cuja habilidade ela fazia questão de demonstrar-me com ela mesma, testando-as em orgias ou em companhia singular – tiravam-me do torpor. Brancas, negras, ruivas, novas, velhas, anãs, lésbicas, bi-sexuais, acrobatas de circo, passaram todas pelo meu apartamento. Debalde. Até que minha governanta desistiu e, para fazer jus ao salário que recebia, passou a servir-me de aia, preparando-me as refeições, lavando e passando minha roupa e dando-me banhos de sais. Por causa desses banhos, cheguei a ter uma ereção, que logo esvaiu-se preguiçosa, para tristeza da profissional que, com fé e lealdade, acompanhava-me na pior fase de minha vida.

Mas o tempo vai mudando o ânimo da gente. E consegui ter energia para, finalmente, iniciar o tão sonhado projeto: uma nova fase de minha pintura, que se distanciaria dos retratos e abriria para o observador um universo de solidão interior. Algo assim como a pintura de Hopper, que tão solidamente servia-se do exterior para abrir as portas àquilo que eu chamava de “dolorosa reflexão inconsciente”.

Apostei firmemente nesta fase e, mesmo sendo advertido por Cybele, nela continuei e me esmerei. Aprendi mais sobre texturas, sobre arquitetura, sobre marcenaria. Visitei ateliês de artesãos, inclusive daqueles que fabricavam barcos. E confirmei que era dos materiais como a pedra e a madeira que eu arrancaria a humanidade que me aliaria à Maria Vitória. Na presença apenas ocasional de figuras “vivas”, queria desvelar os quadrantes da do porquê das pessoas – aqueles que pré-existiram àquelas figuras ou mesmo à sua ausência. Quando tive um grupo dessas telas prontas chamei Cybele; também fotografei-as e enviei as fotos por e-mail para Maria Vitória. De Cybele tive imediato apoio – ela achava que, agora, eu estava pronto para a Europa. E ela estava certa: já expus, com grande sucesso, em Berlin e Milão. De Maria Vitória recebi um e-mail com um link para o YouTube – ela promovera um flash mob em Olinda. Seu vestido branco com um cinto de cetim verde destoava do figurino das demais participantes – gostosinhas ou gordinhas, bem-humoradas ou vãs. Foi a única resposta que enviou-me. E eu entendi.

Rubélio continuou a aparecer de vez em quando. Gostava de ver o desfile das prostitutas e filar uma bimbada de graça. Ele merecia. Merecia até comer minha governanta – o que fez dentro da piscina, fumando um dos meus cubanos e tomando um rum nicaragüense da melhor qualidade. Uma vez veio ao apartamento com a Eva. Descaradamente pediu que eu fizesse um retrato dos dois, trepando. Achei que era demais e fiz com que entendesse que eu achava que era uma blague. No final do dia perguntou-me se eu tivera algo com Maria Vitória. Eu respondi, meneando a cabeça, “ahhh, nahhh”. E ficou por isso mesmo.

Para V/

Perov = 06fev12

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