sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A Dama do Lago


Quando a Bela das Brumas desapareceu, sem aviso nem sinal, Malman começou a ter vertigens e a imaginar que havia sido castigado pelo tanto que fizera antes de entocar-se na floresta. Era uma explicação fácil, sem dúvida, principalmente para alguém que sofria com a culpa do tamanho daquela nutrida, dia-a-dia, por Malman. E ele que acreditara, nos braços da Bela, ter voltado à vida e estar redimido, amargava agora a agonia da recaída.

E a agonia de Malman era tanta que por vezes não parava de caminhar pela choupana, falando consigo mesmo, por um dia inteiro. Acordava, morto de frio, estatelado no chão de terra. E, mal abria os olhos, a agonia começava de novo. E de novo voltava à angústia e à desesperança dos tempos que antecederam o encontro com a Bela das Brumas: não comia, não dormia, só pausava o círculo vicioso quando desmaiava...

Num dos poucos momentos de racionalidade, Malman decidiu que se deixaria morrer. Já estava muito fraco de fome. Agora nem mais beberia um gole d’água. Seria como cortar os pulsos, pensava ele, o cansaço e o estupor levando-o no caminho da morte. E aí não sofreria mais, não haveria mais culpa, e nem a dolorosa saudade do corpo de Bela comendo-o no catre, devorando-o, arrebatando sua alma, enquanto ele a comia da mesma maneira...

E estava cumprindo bem o seu desígnio quando, numa certa manhã, ao abrir os olhos, sentiu sede. E, com a sede, ouviu pássaros e viu os raios de sol que iluminavam o chão onde estava deitado. Sentiu vontade de estar vivo. E o primeiro que fez foi levantar-se, mesmo com dificuldade, e ir para fora. E ao dar com a mata que fechava a clareira, abriu os braços e aspirou profundamente o ar doce da floresta. Caminhou, então, em direção ao lago.

O mato, as árvores, as valas, iam ora escondendo ora anunciando a trilha, que Malman conhecia bem. Tropeçava, entretanto, por conta da fraqueza em que ficara, até que, ao se aproximar da margem do lago, já bem mais rala a vegetação e úmidos os pés, o bruxo parou para respirar e então ouviu uma pequena voz que entoava uma suave canção. Espreitou e viu uma belíssima jovem que, sentada numa pedra, molhava os pezinhos na água.

A jovem era sem dúvida uma fada, pensou Malman, enquanto se escondia para admirá-la melhor. Os cabelos louros desciam em grandes anéis, alguns quase um reflexo, e caíam pelos ombros e pelo colo delicado. Vestia uma espécie de túnica diáfana branca que contribuía para fazer-lhe mais etérea a figura. Tinha a tez muito alva, embora rosadas fossem as maçãs do rosto. E tudo nela era a perfeição de um camafeu – o nariz, a boca, as mãos...

Algum ruído chamou a atenção da jovem, que logo estava olhando em direção ao lugar onde estava Malman. E então, como a demonstrar que o via e não lhe tinha receio, a jovem sorriu para o bruxo, levantou-se e rumou em sua direção. Malman estava fraco demais para correr ou esconder-se; e ficou por ali mesmo, paralisado de vergonha, esperando que ela o alcançasse. E ela o alcançou e pousou a mão sobre seu ombro, acalmando-o. Imediatamente Malman sentou-se, e a jovem pode observar o estado lastimável em que o bruxo se encontrava.

Parecendo saber do dilema e do suplício do bruxo, a jovem deixou-o sentado enquanto foi à beira do lago, e voltou trazendo água num pequeno cântaro. A pequenos goles deu de beber a Malman, e, quando saciou parte da sua sede, lavou-lhe o rosto e os pés, deixando que o bruxo a observasse. Terminado o ritual, a jovem sentou-se, encostada no tronco de uma árvore, fez sinal para Malman e o acolheu em seu colo. E, sentindo a mão suave da jovem no seu rosto e em seus cabelos, Malman adormeceu sem perceber que fechava os olhos e caía nos braços de Morfeu...

Acordou ainda no colo da jovem. Os cabelos dela, dourados pelo sol da tarde, tocavam suavemente o rosto dele. Haviam ficado ali por horas e a jovem não parecia cansada, tal era o seu sorriso luminoso. Malman sentia-se melhor do que nunca; melhor até que nos tempos em que dormia sobre colchões de penas e acordava entre sedas e lençóis de linho.

Já sentado, Malman, agradecido, perguntou à jovem quem era ela. E ela respondeu-lhe que era a Dama do Lago e que sempre vivera por ali mesmo. Embora Malman afirmasse que nunca a tinha visto, a Dama disse que o conhecia bem. O bruxo, acostumado ao extraordinário, nada mais inquiriu – pôs-se de pé, sacudiu-se, e tomou o caminho de casa na companhia da jovem benfeitora que, com toda a naturalidade, seguia a seu lado, tão silenciosamente como se não estivesse ali.

Na verdade, nada na aparência da Dama do Lago gritava, chamando atenção. A não ser por sua prístina beleza e a tranquilidade que exsudava, a jovem passaria despercebida, mimetizada, tomada como um elemento da natureza que a rodeava. O contraste com a aura turbulenta de Malman era a única característica que a destacava enquanto caminhavam pela trilha em direção à choupana do bruxo.

O Sol acabava de se pôr quando chegaram. O bruxo entrou à frente, abrindo caminho entre debris, e a jovem atrás. Imediatamente após a entrada da Dama pareceu a Malman que a toca imunda se iluminava. Cada ponto que a jovem tocava ganhava a refração de um cristal. E logo o interior da morada brilhava como se um bando de pirilampos a tivesse invadido.

Malman, encantado, sentou-se no catre enquanto observava a mágica aparentemente simples que a Dama utilizava. Até que ela deu-lhe um sorriso e perguntou-lhe se queria comer algo. E Malman sentiu uma grande fome, ou melhor, uma fome saudável, das que se sente quando se termina um dia de trabalho justo. E disse que sim, mas atalhou que não havia coisa alguma que comer.

A Dama, dando continuação à seção de mágica, fez surgir um par de peixes e os utensílios necessários: fogo, uma panela, óleo, dois pratos e pão. Para completar, esticou uma toalha branca sobre a mesa que Malman usava para tudo, e chamou-o para o jantar.

O peixe estava, como se pode imaginar, delicioso, leve e nutritivo. O pão fez um bom complemento e a conversa dos dois prolongou-se por algum tempo depois que terminaram a refeição. Sem fazer ruído, a Dama recolheu todos os pratos e empilhou-os num canto. Depois, com a suavidade que era sua característica, tomou Malman pela mão, conduziu-o para o catre, fez com que se deitasse e, sentada na borda, entoou uma canção de ninar que Malman reconheceu, agradeceu, fechou os olhos e dormiu.

Quando acordou, Malman não reconheceu, de início, onde estava. Pouco a pouco, depois de apalpar-se bem e abrir e fechar os olhos várias vezes, percebeu que estava em casa. Só que a casa era muito diferente do que costumava enxergar: tudo brilhava; havia mais janelas abertas; os cantos escuros eram, agora, claros; e não havia traço de sujeira nos cantos.

Ao levantar-se, espantado, deu com a jovem fada – ou melhor, com a Dama do Lago que, muito alegremente, deu-lhe um mavioso “bom dia” e perguntou se havia dormido bem. Malman agradeceu-lhe os cuidados e, lépido como há muito não conseguia mover-se, disparou em direção à floresta. Precisava aliviar-se e, pelo menos, lavar o rosto.

Em seguida foi ao lago, onde se olhou na superfície espelhada. “Que lástima!”, pensou. Rápido tirou as vestes andrajosas e tomou um banho envigorante. Estava praticamente novo, quando saiu da água e faltou pouco para não atear fogo aos andrajos que o esperavam. Trataria disso depois, refletiu enquanto voltava à casa, ansioso por reencontrar a Dama.

Daquele dia em diante Malman e a Dama do Lago passaram a compartilhar a choupana que, agora, nada tinha mais da aparência do tugúrio onde o bruxo vivia sua vida de ermitão. Às vezes a jovem fada fazia-lhe companhia por um dia inteiro; às vezes, sem aviso, desaparecia. O bruxo foi se acostumando a essas idas e vindas e estadas. Estava feliz e nem sentia saudades das reuniões que tinha com outros bruxos. A única memória que lhe turvava o pensamento era, ainda, a Bela das Brumas...

Os dois magos trocavam ensinamentos e, pelo andar do que ocorria na casa, era Malman quem mais aprendia. Aos poucos os potes e vidros onde o bruxo guardava suas poções, pós, amuletos, unhas, patas e rabos, foram perdendo a coloração lamacenta, e o lodo foi-se transformando em filtros que coloriam vidros transparentes. Ao mesmo tempo, as conjurações de Malman – em que tempestades de raios e redemoinhos tenebrosos cruzavam os ares – foram dando lugar a delicadas transformações ensolaradas. Raramente saía o bruxo, sozinho, pela clareira à noite...

A vida transcorria macia e calma. A Dama do Lago lhe contava histórias, cantava-lhe as canções do bosque, e era gentil. Punha-lhe para dormir e silenciosamente ia para o canto onde armara uma cama de almofadas. Malman acostumou-se a andar limpo, como nos tempos de outrora, e a apresentar para a Dama o seu melhor ser – o médico de grande compaixão e habilidade. Somente às vezes Malman sentia a intensidade da memória da Bela das Brumas. E quando essa memória era intensa demais, escondia-se e masturbava-se até que espantasse, com o gozo, a presença da cigana.

Numa noite fria de Inverno, Malman não conseguia dormir em seu catre. Rememorava cada detalhe da noite em que encontrara a Bela das Brumas e a levara para casa; e cada detalhe do sexo furioso, das mordidas, chupões, gemidos, e do esfolamento ardido do seu membro que não parecia querer retroceder. Levantou-se cuidadosamente para não acordar a jovem fada e, de cócoras, num canto, como um lobo, começou a masturbar-se – devagar a princípio e mais forte, forte, fortíssimo... até que sentiu a mão da Dama no ombro. Que vergonha!

A Dama, entretanto, não fez qualquer estardalhaço. Sem demonstrar qualquer estranhamento, levou-o pela mão de volta ao catre, onde sentou o desnudo Malman. De pé, diante dele, desvestiu-se, expondo ao bruxo toda a sua beleza. Tinha os seios pequenos e redondos, com bicos rosados; era delgada, mas não angulosa; as ancas eram as de uma menina, ainda estreitas; e o pequeno monte de Vênus era adornado por um delicado tufo de pelos, louros como seus cabelos. A alva tez e a carnação macia completavam o quadro dessa Afrodite pós-adolescente. Malman está completamente entregue à beleza pura da Dama do Lago.

E então a jovem fada pega delicadamente a mão do bruxo e faz com ele a toque entre as suas coxas. Malman sente o interior úmido da Dama e sua ereção volta a se fazer notada. Ela sorri, afasta Malman para um lado e, deitando-se de costas, abre-se para ele. Malman entra, sem dor, sem luta, sem fustigamento. Apenas guarda-se dentro da Dama e os dois, com vagar e docemente, vão fazendo amor até que terminam num suspiro de prazer. E assim fazem uma só vez, antes de aninhar-se um nos braços do outro.

Durante as semanas que se seguem Malman e a Dama dormem na cama que ele recém-construiu. Estão juntos e são perfeitos companheiros. Deitado sob as peles e abraçado à mulher que o aquecem, Malman crê que é feliz como nunca fora. Fazem amor metodicamente e a cada vez que o fazem, Malman sente que a culpa que carregara por tanto tempo vai se dissolvendo. Assim como vai se dissolvendo a memória exaustiva da Bela das Brumas...

E chega o dia em que, sorrindo-lhe, a Dama do Lago anuncia que está grávida. E Malman não cabe em si de tanta alegria. É a coroação da parceria que tem com a jovem fada. É o milagre que nem a mais complexa magia poderia produzir. E que ele e ela, amando-se diariamente, haviam conjurado.

Passam-se os meses, com Malman agora devolvendo os cuidados à Dama, dando-lhe sopinhas, colocando mais um travesseiro sob sua cabeça, fazendo todos os trabalhos da casa, contando-lhe histórias e inventando certos passos de dança que a faziam sorrir. Até que chega o dia e a hora do parto. E Malman – de volta à Medicina – não podia crer que a delgada mamãe desse à luz tão facilmente. Mas assim foi: algumas contrações e lá estava, chorando muito, uma linda menina. Logo deram-lhe o nome de Lívia, embora a tez fosse mourisca e os olhos e cabelos negros. E Malman teve a impressão de que formavam uma família.

E o lar (sim, o lar) de Malman não poderia estar mais feliz. Com a chegada de Lívia, a Dama multiplica suas habilidades. Faz manjares, canta cantigas, dança danças encantadas. Exibe toda a sorte de truques paranormais – telecinese, levitação, telepatia... E faz com que Malman e Lívia estejam sempre alegres e sorridentes. Malman, por sua vez, constrói um móbile, coze marionetes, inventa personagens usando batatas, pepinos e tomates, e compartilha todos os momentos de alegria da pequena Lívia.

O casal voltou a fazer amor com frequência, da mesma forma metódica. Exceto quando, em determinada noite, estando Lívia já a dormir, a Dama segurou, sem aviso, o membro de Malman. Não era um segurar delicado, mas uma pegada incisiva, quase dolorosa. E o fez ficar ereto, terminando por chupá-lo com uma fome que surpreendeu Malman. Ato contínuo subiu sobe ele e comeu-o vorazmente, uma, duas vezes. Malman temeu que Lívia acordasse, mas foi também tomado pela febre e devolveu à Dama, em intensidade e empenho, o que ela lhe dera. E assim foram lutando e perdendo até que não havia mais forças e desejo que os fizesse continuar um dentro do outro, mordendo, dobrando, prendendo. Dormiram, então, exaustos e completos, desconhecendo a hora e a temência a Deus.

No dia seguinte, Malman acordou tarde, ainda doído da noite anterior. A jovem fada não estava por ali. E nem a pequena Lívia. Deviam estar visitando o lago, tomando banho, ensinando e aprendendo espertezas. Malman levantou-se e repassou o episódio da noite anterior. Era como se a Bela das Brumas o tivesse visitado, só para dizer que estaria sempre presente em sua vida. Na verdade, se Malman se lembrava bem, o corpo da Dama havia adquirido uma densidade e um peso que não lhe eram comuns; e a fome... ah, a fome! O que tinha sido aquilo?... Voltaram-lhe rapidamente as memórias do tempo de devassidão, que ele logo espantou com a mão, como se fossem moscas...

Passou-se então a manhã, e depois a tarde. Quando a noite caiu e as duas não voltavam à casa, Malman acendeu um archote e saiu a procurá-las pela clareira e, depois, pela trilha que levava ao lago. E não as achou. Voltando à casa, serviu-se de um velho encantamento para ver, na fumaça, o que teria havido. E viu as duas amadas correndo pela trilha que levava ao lago, sem olhar para trás, em fuga. “Foram-se!”, gritou, aturdido, Malman. “Foram-se”, repetiu várias vezes, cada vez mais alto, até que a expressão perdeu o jeito de palavra e transformou-se num grunhido desesperado. E então Malman rasgou as vestes, quebrou todos os móveis, derrubou todos os frascos, rasgou todas as cortinas e lançou-se ao catre com ganas de morrer.

Pero Vaas = 23set11

[para Dark Butterfly – que não só inspirou o personagem, mas também contribuiu para a sua construção]

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

As Botas de Lane


Lane andava muito triste, sem saber por que. Não tinha vontade de correr, nem brincar; ficava sentadinha no banco quando a professora liberava a turma na hora do recreio.
Isso era muito estranho, porque Lane era conhecida por ser muito alegre e engraçada. Chegava de manhã na escola e contava uma história nova. Todos riam muito e pediam outra, que ela deixava para o dia seguinte.
Mas nessa última semana tinha sido diferente. Lane estava muda, sem inspiração. Primeiro os coleguinhas perguntavam a ela o que tinha havido. Depois se perguntavam uns aos outros. E, como não havia resposta que coubesse, pararam de ligar pra Lane.
Na verdade, nem Lane sabia o que acontecia com ela. Mas sabia que tudo começara quando vira o menino novo sentar do lado dela. Naquele momento, o coraçãozinho de Lane deu um salto e ela perdeu toda a graça.
E o pior de tudo era que o tal menino novo não ria das histórias dela, nem mostrava interesse algum. Só queria jogar futebol com os outros meninos. E nada de dar atenção à Lane. Se ao menos ela jogasse futebol...
Contou tudo pra mãe, sua melhor confidente, que a consolou dizendo que meninos eram assim mesmo, diferentes de meninas; mas que, com o tempo, eles iam se compreendendo melhor e dando um jeito de ficarem amigos. De quebra, com um beijinho carinhoso, a mãe prometeu a Lane uma surpresa – que ela não disse qual era, claro, nem quando daria.
Mas coisas ainda pioraram quando veio na agenda o convite para a festa de aniversário de uma coleguinha. "E agora...", pensou Lane, "... eu não sei dançar... vou pagar o maior mico na frente desse menino...".
Naquele dia Lane foi para casa mais triste ainda. Desconsolada, nem fez o dever de casa. Atirou-se na cama de través, chorando. E estava no meio do choro quando viu um par de botas novinhas debaixo da cama...
"Uái... que botas são essas? Será que é a surpresa que mamãe comprou pra mim?", falou Lane consigo mesma. E logo calçou as botas, que ficaram certinhas no pé; muito confortáveis mesmo.
Lane se olhou no espelho e ficou muito alegre. As botas tinham sido feitas pra ela! E nem se deu conta quando, ao andar pra lá e pra cá, começou a ensaiar uns passinhos bem legais...
Foi uma tremenda surpresa se ver no espelho dando passos cada vez mais elaborados e difíceis, mesmo sem qualquer música tocando. "Será que essas botas são mágicas?", perguntou-se Lane. Nem quis saber da resposta; estava tão contente com a surpresa que ficou de botas o dia todo e só as tirou na hora descer para jantar.
Naquela noite, Lane sonhou que estava com um grupo muito bem treinado, dançando uma quadrilha. Eram todos coleguinhas da escola. E dançavam muito bem, com muita animação. Menos o menino novo, que ficara de lado, amuado e sem graça. Lane ainda guardava a sensação do sonho quando acordou no dia seguinte. Era sexta-feira e a festinha estava combinada para aquele dia.
As horas da escola passaram bem rápido. Lane estava mais alegre e chegou a pular corda na hora do recreio. Os coleguinhas ficaram alegres também, vendo que Lane voltava a ser o que era antes.
Naquela tarde, Lane escolheu o vestido rodado pra fazer muita firula no baile. Na hora de aprontar-se, calçou uma meinha e depois o par de botas, com muito jeito e cuidado. Olhou-se de novo no espelho e quase começou a dançar; mas já estava na hora da festa.
Desceu correndo as escadas e nem ouviu quando a mãe perguntou que botas eram aquelas. Foi logo entrando no carro do pai da amiguinha e disse “Pé na tábua, “seu” Pero”. Todo mundo riu e lá se foram pra festa.
O salão era grande, mas a meninada conseguiu encher a pista. A música era conhecida, a dança estava muito boa e alguns mais afoitos se contorciam. Lane chegou e foi logo para o meio do salão, sozinha. Dançava tão bem que todos paravam para vê-la. E nem bem estava se divertindo quando um menino após outro a puxava para fazer par.
No meio desse fuzuê, Lane viu o menino novo num canto, exatamente como no sonho, só comendo brigadeiro e sanduichezinho e tomando refri. Ficou meio que com pena, com vontade de ir até ele, mas não conseguia parar dançar, tantos eram os candidatos que parecia uma enorme fila.
Finalmente, num intervalo, Lane conseguiu tempo para beber um refri, fazer xixi e ir para perto do menino novo. Ele, tímido e triste, nem a cumprimentou, mas chegou para um lado, dando espaço para ela se ajeitar. Depois de um tempo, em que a música já começara de novo e Lane recusara alguns pretendentes, o menino novo falou, baixo e sem jeito: “Você dança muito bem...”. “Que nada...” respondeu Lane, “... você é que joga futebol muito bem; eu queria é saber jogar daquele jeito...”. Os dois riram muito e ficaram conversandinho até que se deram conta que a festa estava terminando e estavam tocando a última música.
Lane, então, pediu ao menino novo que dançasse com ela. Ele, a princípio, recusou, dizendo que não sabia dançar, mas a mão de Lane era doce e segura. E os dois foram para o meio do salão. Curiosamente, os passos de Lane foram se entrelaçando perfeitamente aos passos do menino novo e, quando a música terminou, os dois estavam dançando de rosto coladinho.
Antes de dizerem “bye”, o menino novo disse a Lane “Obrigado”. E Lane respondeu “Obrigada”, segurando nas bordas do vestidinho e ensaiando um cumprimento formal. E assim sorriram e partiram.
Chegando em casa, Lane deu um boa noite geral, piscou o olho pra mãe e subiu direto pro quarto. Atirou-se de través na cama, mas dessa vez não chorava. Só ria muito. Descalçou e arrumou as botas debaixo da cama, trocou rápido o pijama, escovou os dentes, fez xixi e foi direto dormir.
No dia seguinte acordou com a mãe abraçando. “Viu a surpresa que deixei pra você debaixo da cama?”, perguntou a mãe. Lane, bem sabida que era, fingiu que não sabia e foi procurar as botas. Qual não foi surpresa quando viu, no lugar delas um par de tênis-chuteiras novinho, e ouviu a mãe dizer “Seu pai vai ensinar você a jogar futebol durante o fim-de-semana... Não é legal?”.

Pero Vaas 14set2011 


[para minha amiga Lane, que anda borocoxô e merece um brake]

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Malman


Como e por que terá Malman ido parar na clareira da floresta? Esta é a história que precede o encontro com a Bela das Brumas.



O pai de Malman era um rico mercador de tecidos que tinha clientes e amigos poderosos. Quando Malman completou doze anos, o pai entregou-o à proteção de um bem-sucedido capitão de navios que faziam a rota para a Ásia e a África. E assim o rapaz pôde conhecer o mundo para além das fronteiras do lugar onde nascera.

Logo o capitão deu-se conta da inteligência e da disposição do seu protegido. Malman aprendia tudo muito rapidamente – das tarefas da navegação à contabilidade da companhia. Tinha o espírito prático e, ao mesmo tempo, imaginativo e empreendedor. De sorte que, aos quatorze anos, já havia alcançado a posição de lugar-tenente junto ao capitão e protetor. Passava meses entre o mar e paragens exóticas e distantes e absorvia tudo o que trazia aquele mundo novo de possibilidades.

Foi assim que, observando e aprendendo os modos dos lugares que visitava, Malman encontrou sua vocação. Para ele, ler as estrelas, desenhar rotas, cozinhar mezinhas e adivinhar o futuro eram partes do mesmo universo de conhecimento. Levava para cada porto as habilidades que aprendera nos anteriores, adquirindo novas sabedorias e transformando-as todas em suas. E, com isso, ia-se tornando num médico de corpos e almas.

O capitão não deixou de observar o desenvolvimento do rapaz e, com a autorização concedida pelo pai de Malman, entregou-o aos cuidados de um famoso alquimista e cabalista espanhol. Na companhia deste novo mestre, Malman apurou os conhecimentos adquiridos nas suas viagens e passou a dominar as artes da química e das transformações, enquanto aprendia celeremente o Latim. Sendo o alquimista, além de sábio, um libertino, Malman logo praticou as delícias do cunnilingus, recebendo em troca magníficas felatta. Além disso, passou a amealhar boa parte da remuneração do mestre, acumulando economias que lhe serviriam no futuro.

Verificando que Malman estava prestes a superá-lo, inclusive nas conquistas femininas, o esperto alquimista presenteou-lhe com um traje negro e um chapéu de abas largas e mandou-o de volta para o pai. “Ite”, disse, “aula est...” e, com um tapinha nas costas e um apertão carinhoso nas bochechas, despediu-se do aluno recém-formado.

Malman chegou à cidade natal montado num burro, tendo nos alforjes uma pequena bolsa com moedas de ouro e outras tantas com pós, pedaços de coisas, ossos de pequenos animais e preparados especiais. Mais atrás, presa a uma corda, vinha a mula que suportava o peso de dois baús negros, carregados de instrumentos, vasilhames e ampolas. A estranha procissão, embora pequena, ganhou fôlego de grande acontecido quando o populacho deu-se conta de quem era a densa figura e para onde ela se dirigia.

Apeado, Malman ganhou um ardoroso abraço do pai que, ao ver o filho tão bem posto, deu-se a si mesmo os parabéns pela grata idéia de mandá-lo correr mundo. Fechado o portão à frente dos curiosos, pai e filho dirigiram-se abraçados para a casa, onde foi imediatamente preparado um magnífico “repas”, que incluía sopas, assados, pastéis, lingüiças e as sobremesas mais deliciosas. Tudo regado ao bom vinho rosado do Mediterrâneo. Os comensais não podiam mais de contentamento e atiravam perguntas a Malman, que as respondia conforme podia, contando-lhes das aventuras nos continentes distantes e do aprendizado com seus mestres – omitindo as passagens menos lisonjeiras... Tantas e tantas histórias acabaram por cansar os comensais. Com abraços, Malman retirou-se e foi dormir no quartinho que fora seu até a adolescência.

O retorno de Malman foi ainda festejado por alguns dias. Nas primeiras semanas, o pai teve a oportunidade de visitar, na companhia do filho, as tantas casas nobres e burguesas onde tinha amigos, e falar dos préstimos que Malman estava habilitado a oferecer. Assim apresentado à sociedade local, Malman instalou-se ao lado da barbearia, alugando um galpão e transformando-o numa oficina com um aposento decorado, onde receberia a clientela.

Não demorou muito e Malman já era conhecido não só do lugarejo, mas também das cidades vizinhas, onde sua fama de médico havia chegado. E desta forma foi enricando, recebendo dinheiro, jóias, pertences e o que fosse de valor pelas consultas que dava e pelas poções e outros remédios que vendia e administrava. Também recebia, em troca de trabalhos especiais, favores das damas que lhe agradavam – muitos delas dispostas a conceder-lhe tais favores em virtude dos perfumes mágicos e outras feitiçarias que utilizava.

A fama e o enriquecimento rápido vieram acompanhados de arrogância e desprezo pelos sentimentos alheios. O coração de Malman, antes tão aberto aos sofrimentos do mundo, tornava-se duro na mesma proporção em que seus bolsos se enchiam e que cavaleiros e damas vinham confidenciar seus problemas íntimos e buscar as soluções que Malman oferecia. Já não bastavam as viúvas e as senhoras casadas, e mesmo jovens comprometidas, suas aias e mucamas, para saciar os desejos de Malman – ele, agora, queria as donzelas e, dentre elas, as mais puras. Obrigava mães em desespero a entregar suas filhas. Deitava-se com irmãs, fazia orgias onde o defloramento e a sodomia eram o ponto alto.

E Malman não tinha limites. Antes dos trinta já era o homem mais poderoso da região. Entretanto, ficara lasso, engordava a olhos vistos e tinha que esconder a pança sob o vetusto roupão de curandeiro. Não raro ficava intumescido pelo abuso do álcool e dos incontáveis acepipes que ingeria com despudor. Sentindo-se inalcançável, usava seus conhecimentos sem o mínimo respeito pela ética. Certo dia cismou de penetrar a mais formosa e casta donzela de que se tinha notícia. Meteu a idéia na cabeça e começou a cercar a família da donzela com mimos e palavras, tornando-se amigo dileto e freqüente comensal.

Usando do estratagema diabólico, levou a bela donzela a seu galpão, pretextando que desejava curá-la de uma inexplicável fraqueza, que vez por outra a fazia desvanecer. Uma vez no covil, deu-lhe de beber algo que disse ser um “vinho reconstituinte” mas que era, na verdade, uma poção da paixão, criada por um curandeiro africano que acabou morrendo em êxtase.

E eis que, nem bem chegara ao derradeiro gole, a donzela se entrega a Malman, ensandecida. Arranha-se, sente-se queimar inteira, suspira, arqueia o corpo voluptuosamente e implora ao mago que a tome de uma vez para que cesse a agonia. Malman arranca-lhe as roupas, morde-lhe um seio e, depois, o suave pescoço; como um vampiro, alimenta-se do corpo virgem, enfia-lhe o membro na boca até que se engasgue uma, e outra vez, e mais outra... E, por fim, a penetra com brutalidade, na frente e atrás, sem parar, até que se cansa e a empurra para um lado, exangue, e dorme. Acorda algum tempo depois e serve-se novamente da donzela, sorvendo cada detalhe do prazer inescrupuloso e aumentando o sofrimento da presa que, entretanto, sente-se compelida a deixar-se devorar.

Ao despertar depois de tanta refrega, Malman dá com o corpo estuporado da donzela e se inteira de que teria que engabelar urgentemente a família amiga. E assim o faz: procura pelos pais da moça e diz que o caso é grave e que a menina teria que ficar sob sua vigilância contínua por alguns dias. A credulidade ingênua do casal é sua aliada, e Malman volta para a alcova, onde alimenta a donzela e a vai ressuscitando. A moça não se recorda de coisa alguma e, também ingenuamente, deixa que Malman a trate da estranha enfermidade até que, ao cabo de três dias, já se sente reabilitada e livre dos desmaios, concluindo-se a aventura com a devolução da jovem à casa paterna.

Passam-se os dias como dantes, com Malman dando suas consultas e conspurcando as clientes por quem se sente atraído. Até que, estando a atender um par de senhoras, é interrompido por insistentes batidas à porta. Fechando enfezadamente o roupão, Malman dá com a donzela à sua porta. Está pálida e se diz tomada de enjôos; implora por alguma ajuda. E Malman percebe que está grávida. Convida-a a entrar e rapidamente desfaz-se das clientes que saem contrariadas. A sós com a donzela, insiste para que tome uma taça do seu vinho onde, disfarçadamente, dissolve um fortíssimo constritor. Com a moça tomada pelo torpor que lhe dá o álcool, despacha-a para casa e vai sentar-se, preocupado, num dos cantos do galpão. Mas logo afasta suas preocupações com um bom gole do rosado – este não batizado.

Poucos dias depois é novamente procurado pela jovem a quem dera o abortivo. A moça acomoda-se triste na poltrona que Malman lhe oferece e lhe conta que algo aconteceu e que não tem condições de explicar como ficara grávida. Seus pais a acusavam de leviana, embora ela tivesse a certeza de que não estivera na companhia de qualquer homem a não ser o mago. Nos olhos da jovem Malman vê a acusação que ela lhe dirigia e, fingido, inventa histórias, tece e torce argumentos com tanta habilidade que faz a menina sentir-se culpada por anelar semelhante ideia. A jovem, então, despede-se de Malman dizendo que o que a deixara mais triste e condoída fora perder um filho, agora que estava mesmo em desgraça...

Pouco tempo depois Malman soube que a jovem se suicidara, atirando-se de uma ponte ao rio. Sentiu-se aliviado, mas não por muito tempo. Ao que parece, uma criada da jovem suicida aventara a hipótese do envolvimento de Malman no infortunado episódio, costurando partes imaginadas com algumas evidências, e a versão começou a ganhar corpo. E Malman foi sentindo a pressão. Primeiro foram escasseando os clientes, depois viravam-lhe o rosto na rua, ainda depois começaram a atirar-lhe impropérios. Os médicos e farmacêuticos locais, que haviam perdido clientela e prestígio com a prática de Malman, organizaram-se para conseguir um édito papal contra o mago. E por último, sua família passou a fechar-lhe as portas. O pai adoeceu e meteu-se na cama, de onde nunca mais levantou-se.

Malman começou, assim, a viver o remordimento do que fizera com a desgraçada jovem. Passou a memória pelo que havia sido – e se orgulhava de ser – e pelo que se tornara. Não adiantava culpar a boa sorte; ao contrário, só lhe restava culpar a si mesmo, que transformara toda a riqueza e poder amealhados em distanciamento e frieza. E quando o pai faleceu de tristeza malman rasgou as vestes, rangeu os dentes, jejuou e tomou o destino da floresta, para viver em solidão e expiar sua pesada culpa. De médico, havia tornado-se um bruxo – e bruxo deveria ser pelo resto de seus dias...

[Para Dark Butterfly, a amiga que inspirou a Bela das Brumas]

01set2001



segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Amnésia

Selma Eliza/tua amnésia/te mantém viva/em todas as minhas vidas/Just/De/como seja/estudando ballet/enviando-me flores/localizando meus posts e respondendo-me em outro século/com cartazes multi/teu nariz tua força/e eu ainda sentindo o perfume/dos teus roseirais/da Bom Jardim soterrada/e de tudo que minha memória guarda/mesmo do caco de vidro no fundo do mar machucando-me o pé/Selma Eliza/presente em todos os presentes/raspando em minha trave e fazendo-me gols completos/deixando-me encantado e mordido/sempre lembrando/sempre lembrando/sempre teu/raivosamente teu.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Duas para V/, uma gueixa



talvez/dizes e pensas/que assim me tens pelos arreios/e me tens/mas só um pouco/enquanto me anima/teu ranger de dentes/imaginado/na cama em que/te ato.

ela beijou-me com franqueza/água feita terra/firme/não houve riso/nem abrir de novas portas/apenas o centro do universo plantado/no meu peito/franco.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Bom-Dia Brasil = 05 de janeiro de 2011




Voltando da caminhada pela orla, fiz café, abri uma maçã e sentei-me diante da TV para checar o “Bom Dia, Brasil”.

Assisti a três matérias em seqüência, no espaço de aproximadamente vinte minutos:

1.         reunião dos caciques do PMDB para discutir a relação com o PT, com pequenas entrevistas de Garibaldi Alves, Renan Calheiros, Michel Temer e Valdir Raupp, e com imagens subseqüentes de Roseana Sarney e outros convivas de menor evidência;

2.         entrevista com um especialista do IPEA sobre os problemas da Previdência, tendo em vista o “envelhecimento” da população do País e outras variáveis problemáticas detectadas pelo último censo; e

3.         cenas de mais um desabamento de barreira na região serrana do Rio de Janeiro (Petrópolis), devido às chuvas recentes, com a conta de três mortos – uma adolescente e duas crianças.

Enlaçando as duas primeiras matérias, assisti a comentários de Alexandre Garcia e Zileide Silva sobre a primeira crise de governo, advinda das disputas partidárias para preencher o segundo escalão do governo federal. Tais comentários referiam o aumento do salário mínimo como moeda de troca – o PMDB fincando o pé em não menos que R$580,00 e o governo (Guido Mantega) rebatendo que um valor superior a R$540,00 seria vetado.

A terceira matéria, com cenas do local, retratava a dor dos familiares que perderam entes queridos. Nenhum comentário turvou as imagens cruas do drama que se repete. Desliguei a TV antes que o bloco chegasse ao fim e comecei a refletir sobre minhas reações.

Que mundo é esse, afinal, onde convivem temas tão escandalosamente afins, embora dessemelhantes? A princípio, acho que vi um filme de conteúdos desconexos, repletos de imagens fantasmagóricas e referências turvas. Aos poucos vou encontrando a evidência de que as três matérias têm tudo a ver entre elas e de que, realmente, vivemos num circo de horrores, em que os mais necessitados arcam com o ônus da indiferença e do egoísmo da “elite dirigente”, sem que percebamos a relação de causa e efeito que subjaze a tudo isso.

As cenas tão familiares de desabamentos ocasionadas pelas chuvas se perpetuam ano a ano. Com exceção, talvez, de Roberto da Silveira – prefeito de Niterói – nenhum dos governantes (governadores de estado ou prefeitos municipais) que vêm a público nessas oportunidades reconheceram responsabilidade pelos eventos. E nenhum deles, inclusive o mencionado prefeito, tomou medidas efetivas para evitar novos desabamentos durante a estação de chuvas de 2011. Dedicam-se prioritariamente, todos eles, às tricas e futricas associadas à sua sobrevivência política ou à expansão de seus territórios eleitorais e fortunas pessoais.

Vindo de uma agradável experiência na orla, com minha mente e meu corpo conectados à Natureza, sou confrontado com a violência do noticiário. Não a violência de um tiroteio, não a violência de um seqüestro, não a violência de uma guerra; mas com a violência que está em quase toda a nossa vida política, explicitada na cara cínica de nossos dirigentes – violência surda, imperceptível, cruel e extremamente perversa.