quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Malman


Como e por que terá Malman ido parar na clareira da floresta? Esta é a história que precede o encontro com a Bela das Brumas.



O pai de Malman era um rico mercador de tecidos que tinha clientes e amigos poderosos. Quando Malman completou doze anos, o pai entregou-o à proteção de um bem-sucedido capitão de navios que faziam a rota para a Ásia e a África. E assim o rapaz pôde conhecer o mundo para além das fronteiras do lugar onde nascera.

Logo o capitão deu-se conta da inteligência e da disposição do seu protegido. Malman aprendia tudo muito rapidamente – das tarefas da navegação à contabilidade da companhia. Tinha o espírito prático e, ao mesmo tempo, imaginativo e empreendedor. De sorte que, aos quatorze anos, já havia alcançado a posição de lugar-tenente junto ao capitão e protetor. Passava meses entre o mar e paragens exóticas e distantes e absorvia tudo o que trazia aquele mundo novo de possibilidades.

Foi assim que, observando e aprendendo os modos dos lugares que visitava, Malman encontrou sua vocação. Para ele, ler as estrelas, desenhar rotas, cozinhar mezinhas e adivinhar o futuro eram partes do mesmo universo de conhecimento. Levava para cada porto as habilidades que aprendera nos anteriores, adquirindo novas sabedorias e transformando-as todas em suas. E, com isso, ia-se tornando num médico de corpos e almas.

O capitão não deixou de observar o desenvolvimento do rapaz e, com a autorização concedida pelo pai de Malman, entregou-o aos cuidados de um famoso alquimista e cabalista espanhol. Na companhia deste novo mestre, Malman apurou os conhecimentos adquiridos nas suas viagens e passou a dominar as artes da química e das transformações, enquanto aprendia celeremente o Latim. Sendo o alquimista, além de sábio, um libertino, Malman logo praticou as delícias do cunnilingus, recebendo em troca magníficas felatta. Além disso, passou a amealhar boa parte da remuneração do mestre, acumulando economias que lhe serviriam no futuro.

Verificando que Malman estava prestes a superá-lo, inclusive nas conquistas femininas, o esperto alquimista presenteou-lhe com um traje negro e um chapéu de abas largas e mandou-o de volta para o pai. “Ite”, disse, “aula est...” e, com um tapinha nas costas e um apertão carinhoso nas bochechas, despediu-se do aluno recém-formado.

Malman chegou à cidade natal montado num burro, tendo nos alforjes uma pequena bolsa com moedas de ouro e outras tantas com pós, pedaços de coisas, ossos de pequenos animais e preparados especiais. Mais atrás, presa a uma corda, vinha a mula que suportava o peso de dois baús negros, carregados de instrumentos, vasilhames e ampolas. A estranha procissão, embora pequena, ganhou fôlego de grande acontecido quando o populacho deu-se conta de quem era a densa figura e para onde ela se dirigia.

Apeado, Malman ganhou um ardoroso abraço do pai que, ao ver o filho tão bem posto, deu-se a si mesmo os parabéns pela grata idéia de mandá-lo correr mundo. Fechado o portão à frente dos curiosos, pai e filho dirigiram-se abraçados para a casa, onde foi imediatamente preparado um magnífico “repas”, que incluía sopas, assados, pastéis, lingüiças e as sobremesas mais deliciosas. Tudo regado ao bom vinho rosado do Mediterrâneo. Os comensais não podiam mais de contentamento e atiravam perguntas a Malman, que as respondia conforme podia, contando-lhes das aventuras nos continentes distantes e do aprendizado com seus mestres – omitindo as passagens menos lisonjeiras... Tantas e tantas histórias acabaram por cansar os comensais. Com abraços, Malman retirou-se e foi dormir no quartinho que fora seu até a adolescência.

O retorno de Malman foi ainda festejado por alguns dias. Nas primeiras semanas, o pai teve a oportunidade de visitar, na companhia do filho, as tantas casas nobres e burguesas onde tinha amigos, e falar dos préstimos que Malman estava habilitado a oferecer. Assim apresentado à sociedade local, Malman instalou-se ao lado da barbearia, alugando um galpão e transformando-o numa oficina com um aposento decorado, onde receberia a clientela.

Não demorou muito e Malman já era conhecido não só do lugarejo, mas também das cidades vizinhas, onde sua fama de médico havia chegado. E desta forma foi enricando, recebendo dinheiro, jóias, pertences e o que fosse de valor pelas consultas que dava e pelas poções e outros remédios que vendia e administrava. Também recebia, em troca de trabalhos especiais, favores das damas que lhe agradavam – muitos delas dispostas a conceder-lhe tais favores em virtude dos perfumes mágicos e outras feitiçarias que utilizava.

A fama e o enriquecimento rápido vieram acompanhados de arrogância e desprezo pelos sentimentos alheios. O coração de Malman, antes tão aberto aos sofrimentos do mundo, tornava-se duro na mesma proporção em que seus bolsos se enchiam e que cavaleiros e damas vinham confidenciar seus problemas íntimos e buscar as soluções que Malman oferecia. Já não bastavam as viúvas e as senhoras casadas, e mesmo jovens comprometidas, suas aias e mucamas, para saciar os desejos de Malman – ele, agora, queria as donzelas e, dentre elas, as mais puras. Obrigava mães em desespero a entregar suas filhas. Deitava-se com irmãs, fazia orgias onde o defloramento e a sodomia eram o ponto alto.

E Malman não tinha limites. Antes dos trinta já era o homem mais poderoso da região. Entretanto, ficara lasso, engordava a olhos vistos e tinha que esconder a pança sob o vetusto roupão de curandeiro. Não raro ficava intumescido pelo abuso do álcool e dos incontáveis acepipes que ingeria com despudor. Sentindo-se inalcançável, usava seus conhecimentos sem o mínimo respeito pela ética. Certo dia cismou de penetrar a mais formosa e casta donzela de que se tinha notícia. Meteu a idéia na cabeça e começou a cercar a família da donzela com mimos e palavras, tornando-se amigo dileto e freqüente comensal.

Usando do estratagema diabólico, levou a bela donzela a seu galpão, pretextando que desejava curá-la de uma inexplicável fraqueza, que vez por outra a fazia desvanecer. Uma vez no covil, deu-lhe de beber algo que disse ser um “vinho reconstituinte” mas que era, na verdade, uma poção da paixão, criada por um curandeiro africano que acabou morrendo em êxtase.

E eis que, nem bem chegara ao derradeiro gole, a donzela se entrega a Malman, ensandecida. Arranha-se, sente-se queimar inteira, suspira, arqueia o corpo voluptuosamente e implora ao mago que a tome de uma vez para que cesse a agonia. Malman arranca-lhe as roupas, morde-lhe um seio e, depois, o suave pescoço; como um vampiro, alimenta-se do corpo virgem, enfia-lhe o membro na boca até que se engasgue uma, e outra vez, e mais outra... E, por fim, a penetra com brutalidade, na frente e atrás, sem parar, até que se cansa e a empurra para um lado, exangue, e dorme. Acorda algum tempo depois e serve-se novamente da donzela, sorvendo cada detalhe do prazer inescrupuloso e aumentando o sofrimento da presa que, entretanto, sente-se compelida a deixar-se devorar.

Ao despertar depois de tanta refrega, Malman dá com o corpo estuporado da donzela e se inteira de que teria que engabelar urgentemente a família amiga. E assim o faz: procura pelos pais da moça e diz que o caso é grave e que a menina teria que ficar sob sua vigilância contínua por alguns dias. A credulidade ingênua do casal é sua aliada, e Malman volta para a alcova, onde alimenta a donzela e a vai ressuscitando. A moça não se recorda de coisa alguma e, também ingenuamente, deixa que Malman a trate da estranha enfermidade até que, ao cabo de três dias, já se sente reabilitada e livre dos desmaios, concluindo-se a aventura com a devolução da jovem à casa paterna.

Passam-se os dias como dantes, com Malman dando suas consultas e conspurcando as clientes por quem se sente atraído. Até que, estando a atender um par de senhoras, é interrompido por insistentes batidas à porta. Fechando enfezadamente o roupão, Malman dá com a donzela à sua porta. Está pálida e se diz tomada de enjôos; implora por alguma ajuda. E Malman percebe que está grávida. Convida-a a entrar e rapidamente desfaz-se das clientes que saem contrariadas. A sós com a donzela, insiste para que tome uma taça do seu vinho onde, disfarçadamente, dissolve um fortíssimo constritor. Com a moça tomada pelo torpor que lhe dá o álcool, despacha-a para casa e vai sentar-se, preocupado, num dos cantos do galpão. Mas logo afasta suas preocupações com um bom gole do rosado – este não batizado.

Poucos dias depois é novamente procurado pela jovem a quem dera o abortivo. A moça acomoda-se triste na poltrona que Malman lhe oferece e lhe conta que algo aconteceu e que não tem condições de explicar como ficara grávida. Seus pais a acusavam de leviana, embora ela tivesse a certeza de que não estivera na companhia de qualquer homem a não ser o mago. Nos olhos da jovem Malman vê a acusação que ela lhe dirigia e, fingido, inventa histórias, tece e torce argumentos com tanta habilidade que faz a menina sentir-se culpada por anelar semelhante ideia. A jovem, então, despede-se de Malman dizendo que o que a deixara mais triste e condoída fora perder um filho, agora que estava mesmo em desgraça...

Pouco tempo depois Malman soube que a jovem se suicidara, atirando-se de uma ponte ao rio. Sentiu-se aliviado, mas não por muito tempo. Ao que parece, uma criada da jovem suicida aventara a hipótese do envolvimento de Malman no infortunado episódio, costurando partes imaginadas com algumas evidências, e a versão começou a ganhar corpo. E Malman foi sentindo a pressão. Primeiro foram escasseando os clientes, depois viravam-lhe o rosto na rua, ainda depois começaram a atirar-lhe impropérios. Os médicos e farmacêuticos locais, que haviam perdido clientela e prestígio com a prática de Malman, organizaram-se para conseguir um édito papal contra o mago. E por último, sua família passou a fechar-lhe as portas. O pai adoeceu e meteu-se na cama, de onde nunca mais levantou-se.

Malman começou, assim, a viver o remordimento do que fizera com a desgraçada jovem. Passou a memória pelo que havia sido – e se orgulhava de ser – e pelo que se tornara. Não adiantava culpar a boa sorte; ao contrário, só lhe restava culpar a si mesmo, que transformara toda a riqueza e poder amealhados em distanciamento e frieza. E quando o pai faleceu de tristeza malman rasgou as vestes, rangeu os dentes, jejuou e tomou o destino da floresta, para viver em solidão e expiar sua pesada culpa. De médico, havia tornado-se um bruxo – e bruxo deveria ser pelo resto de seus dias...

[Para Dark Butterfly, a amiga que inspirou a Bela das Brumas]

01set2001



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