sábado, 27 de fevereiro de 2010

Um Jantar Para Sempre

As brasas espalhadas no asador criollo têm a mesma cor e a mesma forma - o mesmo DNA. Os anfitriões, um casal encantador, estão vivendo o melhor momento de suas vidas. A casa é acolhedora; o jardim bem tratado -- nele os convivas estão de pé ou sentados em bancos confortáveis. Falamos de quase tudo e todos têm interesse em ouvir a cada um. A conversa rola macia sob o céu estrelado de Mendoza. Há uma delicadeza despreocupada que nos faz nobres e elegantes.

Vamos à mesa e nos sentamos uns de frente para os outros. A meu lado uma senhora de mão bailarina e voz musical me orienta e fala-me sobre quem é quem. Nos servimos de coisas simples, mas perfeitas - asado, salada e batatas. Nos copos, um vinho vintenário, orgulho do anfitrião, elaborado para seu primeiro neto.

Alguém se levanta e vai buscar algo. Após, começo a escutar música brasileira interpretada por um duo argentino, que mescla tensão e leveza. Uma gentileza dos que me sabem de fora. Depois me regalam o CD.

Mais vinho, desta vez um quinze anos, buliçoso. A bebida nos faz mais alegres e as conversas começam a cruzar diagonais. Aprovamos a sobremesa -- algo levíssimo feito com dulce de leche, é claro.

Vamos de novo ao jardim. O anfitrião pergunta-me se quero un bajativo. Insiste e leva-me para dentro de casa. Mostra-me uma rara botella de vodka. Serve-se, bebe e me estende o copo. Bebo. Está selada a amizade.

Outra vez no jardim, comemos petit-fours e chocolatitos. Estamos com as maçãs do rosto avermelhadas. Falamos de bodegas, arquitetura e vinhos. Temas ali comuns. Aprendo novas histórias antigas e sinto-me um escolhido. Não é possível tanta perfeição, penso.

Mais adiante, a conversa começa a cochilar, por mera educação - como se os presentes entendessem, unânimes, que era o momento de, a pequenos passos, deixar os anfitriões. E de fato a hora de partir chega sem sobressaltos.

Finalmente, vamos aos carros, nos dizemos até logo. Sentimos muito deixar tão boa companhia, mas é necessário evitar emoções desconcertantes. E nos vamos todos ao mesmo tempo.

Esta história irá se repetir? Não creio. Há alguma sensação de perda, por ela haver terminado e não ser repetível? Não. Há algum tempo atrás, o pianista do nosso trio nos dizia "quem ouviu, ouviu, quem não, não tem repeteco, nem para nós mesmos". Este é o segredo da música ao vivo; e é um dos segredos da vida.

Hoje em dia compreendo bem que a experiência vivida lá está, e deve permanecer, intacta. O desejo de repetição ocorre quando desconhecemos que isto é impossível -- sempre frustei-me ao querer novamente à frente o que me havia ocorrido no passado. Bati em portas erradas, vi paisagens decadentes, e abracei relações encerradas -- melhor que tivessem ficado todos, como eram, sólidos e únicos, intocados e para sempre o que foram.

[27fev10]

Grave Ameaça

"Grave Ameaça" -- este foi o título do editorial de O GLOBO desta quarta-feira, dia 1º. de novembro, comentando o constrangimento a que foram submetidos dois jornalistas da revista VEJA numa delegacia da Polícia Federal.

Que ironia, penso eu...

Durante a Ditadura, a meganhada armou dois braços civis da repressão: as delegacias estaduais de repressão aos crimes políticos (os DOPS) e a re-criada Polícia Federal, através das suas delegacias regionais. Estas duas polícias prenderam e arrebentaram quem se insurgia contra o regime, principalmente jornalistas.

Desde então, fixou-se em minha compreensão – por experiência própria e não por histórias contadas – que, não obstante o leva-e-traz de compadres que alimenta o noticiário policial, sempre haveria um conflito jacente entre a função da Imprensa e a da Polícia. Conflito esse que se tornaria claro numa situação “de exceção”, quando à Polícia é dada a missão de calar a população e à Imprensa a de informar a mesma população.

Há ocasiões, entretanto, em que a Imprensa e a Polícia celebram acordos de atuação conjunta. Lá pelos idos dos anos 90, quando era importante para gregos e troianos acabar com a arrogância do sinhozinho das Alagoas, firmou-se um pacto entre a Imprensa, a Polícia e o Ministério Público. Informações privilegiadas eram passadas de lá para cá e estouravam nos diários e semanários; enquanto que inquéritos policiais eram cevados por páginas e páginas do noticiário dos jornais, como se isso constituísse prova definitiva contra os cidadãos investigados; na dianteira do processo, jactava-se o Ministério Público do feito de haver dobrado esta ou aquela figura do governo. Tudo apoiado (e retro-alimentando) por um movimento patriótico que eletrizou a sociedade de cabo a rabo. Na realidade, nunca neste país o Ministério Público andou tão casado com a Polícia (antes tão criticada pelos nobres membros da Promotoria, que sempre a tachavam de corrupta e inepta), com quem caminhava a braços dados pelos corredores do Judiciário à cata de mandados variados.

Nesta época, tive a oportunidade de dialogar com vários jornalistas e de argumentar com eles sobre a irracionalidade de determinadas versões, mostrando uma fartura de documentos públicos em favor dos meus pontos-de-vista. Sempre me respondiam dizendo “mas o delegado tal e qual me disse o contrário”... e ponto final. Eu então retorquia: “vocês esqueceram que essa mesma polícia sentou a porrada em vocês? que torturou muitos de vocês? que matou? esqueceram de Vladimir Herzog? esqueceram das solenidades na ABI? esqueceram que polícia é polícia?”. Esse argumento final era sempre recebido com indiferença – no fim das contas, era essa mesma Polícia que fornecia as manchetes vendedoras de tiragens nunca vistas e guindavam pequenos focas a chefes de sucursal...

Bom... foi-se Collor, para gáudio de todos. Desde aqueles militantes que não conseguiram superar o amargor da derrota que sofreram nas urnas, até a classe média, indignada, que queria ver o sangue da cafajestada que governara o País por dois anos.

A aliança perfumada entre Imprensa, Polícia e Ministério Público (onde a militância já aflorava desassombradamente) produzira frutos. E assim continuaria pelos anos subseqüentes, a embaraçar governos e empresários (membros, ambos, das mesmas “quadrilhas que se dedicavam a roubar o erário e o povo”), tornando o noticiário político um caso de polícia e vendendo mais jornais que os conhecidos “banhos de sangue”.

E eis que desembocamos nos idos do Governo Lula. E vemos que ao embaraço inicial da prisão inopinada (e, depois, punida) de Duda Mendonça, sucedeu-se uma clara estratégia voltada a intensificar a demonstração de que “nunca em nenhum governo a polícia investigou e prendeu tanta gente”. O Ministro da Justiça, antes um ícone na defesa dos direitos humanos, comandou pessoalmente (mas na surdina) uma invejável investida contra “bandos de criminosos ricos”. Era preciso, como se sabe, mostrar – como no episódio da DASLU e dos juízes e deputados de Rondônia – que este era um governo que punia a elite em benefício do povo. E assim foi feito. Uma infinidade de operações – a maioria delas sem o menor cuidado técnico – foi declanchada; prisões foram feitas ao arremedo dos “irmãos do norte” – com o uso de cinturão e algemas nos pés – para encimar o cabeçalho das notícias e produzir efeito cinematográfico. Na cosmética de tais aparatos não faltavam as roupas negras, as viaturas tinindo de novas e o devido vazamento de conversas telefônicas coligidas em segredo de justiça. Não importa, é claro, que a coleta de provas nada conclua... sempre é possível acusar o Judiciário pela soltura deste ou aquele ladravaz... a Polícia Federal cumpre o seu papel... É o descarado uso da força policial em favor de uma corrente política no poder – a exemplo do que fez, com raro sucesso, o Pai dos Trabalhadores – Getúlio Vargas – citado por Lula como seu exemplo.

Disto tudo a Imprensa alimentou-se. E muito bem. Pouquíssimas vozes levantaram-se diante das irregularidades cometidas, do desvão em que se meteu a função pública, da sem-vergonhice marqueteira dos tiras. No bloco de trás, refestelou-se o Ministério Público – que sempre terá, como defesa do seu augusto traseiro, a possibilidade de ser comedido, imparcial, etc., etc., tudo “bullshit”.

Rola que rola, vai que vai, e há essa seqüência avassaladora de picaretagens as mais diversas envolvendo o partido no poder – o PT – e meeiros da convivência fiel e quotidiana de Lula, o Presidente da República. Neste momento, parte da militância (o “hard core” ideológico) já havia abandonado o barco, decepcionada, e juntou-se ao coro dos que queriam uma investigação profunda e arrasadora das atividades da quadrilha de aloprados. E a Imprensa imaginou que a aliança com a Polícia, conquistada durante o defenestramento de Collor, fosse continuar intacta nessa nova investida. Mas não foi bem assim...

Além de estar nas mãos de um articulador e Ministro do partido, polícia é polícia. Quer dizer: o compromisso da polícia é prender e arrebentar a mando do secretário ou ministro da pasta. Assim como “beque que se preza não almeja o Belfort Duarte” (frase genial do zagueiro Moysés, do Vasco – aquele que quebrou a perna do Garrincha num jogo amistoso com o Flamengo), não há tira que ganhe medalha de honra ao mérito por delicadeza. “Liberdade” é palavrão para policial; prender é o seu ofício. Policial que não prende é frouxo, inepto; tira que não pressiona, não arranca, não amedronta, não impõe, não machuca, não serve prá profissão. E não há aliança que altere essa natureza intrínseca do “ser” policial – indivíduos que andam “na escuta”, que “dão uma de mandrake”, que entregam uns aos outros por uma promoção e cujo sucesso está na medida da “autoridade” que impõem.

De outra parte, Ministério Público é Ministério Público. Se há uma situação nebulosa ou que não permita uma entrevista sob holofotes, a Promotoria andará por outras partes mais proveitosas, caçando presas mais gordas e evidentes. Porque esse é o seu mister – acusar – e assim luzir. Pensem bem: (a) o que é mais vil – defender um culpado ou acusar um inocente?; e (b) o que é mais nobre – acusar um culpado ou defender um inocente? Enquanto a advocacia tem um compromisso com a nobreza, o Ministério Público se refestela, muitas vezes, na vilania. O que esperar dele, então, quando a Polícia persegue a Imprensa? Exatamente o que fez a Procuradora Federal presente ao constrangimento dos jornalistas – negar a pressão.

Meus colegas advogados e eu pensamos o seguinte, já há muito tempo: estamos vivendo tempos complicados e embicando para uma situação pior que aquela que vivemos durante a Ditadura. Se naquela época terrível era difícil advogar, mas advogava-se; hoje há um movimento claro no sentido de negar defesa aos acusados. Escritórios são invadidos, telefonemas de advogados gravados, tudo exatamente de acordo com a propaganda que nos impingem os marketeiros auxiliares do partido no poder. Juntou-se a impaciência da população em face da reconhecida impunidade com o interesse escuso dos que desejam provar-se santos e divinos algozes. Como resultado, apressam-se todos a condenar suspeitos ao arrepio do devido processo legal (aquele direito fundamental que o cidadão tem de se ver processado de acordo com as regras do procedimento penal, que lhe garante ampla defesa e sem o qual a Polícia poderia desatar a prender e arrebentar sem qualquer freio).

Felizmente já se ouve a gritaria provocada pela ação da Polícia no caso dos jornalistas da VEJA. Que esse episódio acenda o sinal vermelho (ou, pelo menos, o amarelo) para os formadores de opinião e representantes do povo. Como diz o poema de Eduardo Alves da Costa, muitas vezes atribuído a Maiakovski:

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.


[01nov06]


Referência e comentários ao sucedido pode ser encontrada nos seguintes sites:

http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/presidente-pt-volta-atacar-midia-cuidem-suas-redacoes-que-cuidamos-pt-democracia-deles/

http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u86311.shtml

Interessante notar o andar da carruagem que levou o Judiciário a calar o "Estadão" durante o episódio Sarney, no ano que passou.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Poema para Isa

meu pau/bala de alcaçuz/dentro de tua boceta/fervendo/derretendo/e não importam meus áis/a boca de groselha me dissolve/me chupa/e me devolve no meio de um jardim perfumado/num aquário...

25fev10

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Três Poemas [de Amor] Soltos

tenho essa tara absoluta/por teu roteiro de humores/pela tua fiel envergadura/essa premura, essa premura/por teus trejeitos de mucama/quando rainha és dos bastidores/tenho taras absurdas/meu amor, meu amor/e se de noite/na cama/fico pensando/(em como me amas, me amas)/de dia quando me fuçam/só lêem a parte de cima/um tremendo comercial/na superfície da esfera/de sonho e cimento/que faz e tropeça/a maior arrelia/nossa folia, folia...


repousar minha mão/sobre a pele das tuas coxas/uma pluma/a palma de minha mão/que movimenta-se com a brisa/da tua respiração/e vai subindo/na medida em que arqueias o corpo/e tiquetaqueia/teu coração/até que chegue/no alto/no meio/bem no meio/das tuas pernas/e para tua tortura/pare ali/imóvel/até que peças/que peças muito/que te beije...


tua boca/que sempre me foi amiga/de repente virou de banda/e soprou prá alhures/os gravetos, conchas, ciscos/que compõem parte/de minha vida/e então/essa tua boca/sempre tão minha amiga/virou-se em greta/em precipício escuro/sem eco e surdo/uma boca bocuda/que nada mais é/que um acidente vascular/cerebral...


[22ago06]

A Cidade Entrou Pelo Vidro

a cidade entrou pelo vidro

com estardalhaço mas calada:

dois, três mortos na calçada

-- a lona por cima dos defuntos –

ou execução ou assalto.

passo pela cena

e rompe-se algo aqui dentro

seja a quotidiana indiferença

seja a possibilidade constante da morte.

o dia é de sol e o passeio está cômodo

as ruas são conhecidas

os bares a livraria as bancas de jornal

e por isso a desintegração silenciosa

dessa realidade (que segue presente)

me dói muito

embora não doa

ou doa menos que tirar

a casca de ferida do tombo

de ontem...

[30out06]

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Tempo

Tempo, ou Iroko, é o orixá senhor das mudanças surpreendentes. Ele nos mostra que, por mais que calculemos e projetemos nossas vidas, elas são cascas de noz ao sabor da tempestade, ou do bom tempo.

Tempo torna relativa uma das ferramentas mais importantes para a sobrevivência - o planejamento. Em seu lugar, entretanto, nos faz desenvolver o improviso, a flexibilidade e a criatividade - outras ferramentas muito importantes para a arte de sobreviver.

Não peça sorte a Tempo. Sorte ou azar, para Tempo, não têm significado; e Tempo é totalmente indiferente ao conceito de “merecimento”. Este orixá não lida com pedidos deste tipo, nem com o “bem” ou o “mal”. Talvez por isso mesmo, por essa ausência de parâmetros codificados, com Tempo não se dialoga ou negocia. -- assume-se.

Compreender Tempo é essencial nos momentos difíceis, quando tudo dá errado. Apreender a essência de Tempo nos ajuda, também, a viver melhor a vida, plantados no presente, e dilui o nosso afã de programarmos o futuro em detalhes.

Meu coração se alegrou com dias seguidos de sol, mar de ondas mansas e água tépida. Quando o tempo virou, a chuva fininha caiu e o dia amanheceu envolto em brumas, fui à sacada da varanda e vi o mar em ressaca, com ondas explodindo e a espuma branca cobrindo grandes extensões de praia. Como tudo estava tão bonito! Creditei esta mudança repentina a Tempo. Melhor que isso: creditei a Tempo a minha capacidade de ver o belo na mudança.

[20fev10]

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

A Bela das Brumas

Malman, o bruxo, andava deprimido. Não era a solidão que oprimia seu coração, mas algo mais profundo, que tinha que ver com sua existência. Durante muitos anos criara para si o ambiente perfeito para seus afazeres – ali, na floresta, colhia todos os frutos e folhas e caçava todos os animais necessários ao seu ofício. E, quando não usava a clareira ou o lago para conjurar, na pequena choupana tinha o espaço ideal para preparar e estocar suas poções e pós especiais.

De quando em vez Malman reunia-se com outros bruxos. Bebiam, trocavam segredos, filosofavam e, de alguma forma, mantinham a tradição. Em que pese a alegria de encontrar velhos amigos, e exercitar línguas dos cinco continentes, o bruxo não via a hora de voltar para seu lar na floresta e esperar que passasse bastante tempo antes de receber novo convite para uma reunião de bruxos.

Mas agora tudo lhe parecia sem muito sentido. Malman sentia falta não sabia do que. Uma angústia apertava-lhe o peito e passava dias deitado no rústico catre, sem comer ou beber, apenas suando sob o monte de peles que o cobriam. Quando conseguia pôr-se de pé, sofria o peso da idade e imaginava-se um ancião de mais de cem anos. E, pior que tudo, a força de seus feitiços estava diminuindo rapidamente; de tal forma que não mais era capaz de sequer matar uma lebre ou mesmo um rato do campo. Então, num momento de reflexão, o bruxo chegou à conclusão que deixara de amar o que fazia e ainda não se apaixonara pelo que faria no futuro – estava numa encruzilhada de caminhos fechados.

Malman sentiu que seu caso era de vida ou morte. E, empurrado por sombria sensação, decidiu tomar uma providência. Fazia anos que recorria à noite para buscar a sua força interior. Ficava nu, de pé na clareira e, batendo um tambor cerimonial, entoava os cânticos que aprendera de um irmão shaman. Aos poucos entrava em contato com o mais profundo de seu ser; sua alma era a alma das árvores, do chão, de terra, do vento, dos animais, e pulsava ao ritmo da respiração do Cosmos. E assim tratou de repetir o processo: naquela noite de Outono, fechada e fria, com os ventos a pressagiar conluios, dirigiu-se à clareira, tirou as roupas do corpo e, ao som do tambor, começou a cantar seus mantras até que, rodando e rodando, cercado pela catedral gótica das árvores, sentiu-se envolvido por uma pira de fogo e luz e perdeu a consciência.

Acordou ainda era noite fechada. As nuvens cobriam a Lua de quando em vez e o preto e o azul-escuro eram a cor de quase tudo. Ouviu passos... alguém corria com urgência pelo caminho que dava na clareira. Protegeu-se, metendo-se as roupas de volta o mais rápido possível. E súbito uma figura assoma o lugar. Usa uma capa, mas é seguramente uma mulher... dá alguns passos, lança-se em sua direção e vai ao chão, desacordada.

O bruxo se apressa em socorrer a mulher. Ajoelha-se ao lado dela e afasta os negros cachos que lhe cobrem o rosto. “É bela!”, sussurra Malman para si. Tenta despertá-la, balançando-lhe suavemente os ombros. Mas a bela segue com os olhos fechados. Ele, então, a enrola na capa e levanta-a. Em seus magros braços leva-a para a choupana, onde pensa em preparar-lhe algo.

Malman está desacostumado a ter companhia em seu tugúrio, principalmente de uma mulher, e bela. Sem muito jeito, pousa-a no catre e desata-lhe o nó da capa. Com isto, abre-se a roupa revelando a alvura do pescoço, dos ombros e das mãos. Sem dúvida é uma bela mulher, de seios generosos e ancas arredondadas. Constatando isso, o bruxo se sobressalta, pois sente que pode perder o controle, o poder sobre si mesmo. Levanta-se de repelão e vai buscar água fresca para fazer um chá. Quando retorna, a bela está recostada no catre, fazendo um inventário do que vê à sua volta.

Ela começa a desculpar-se, mas o bruxo lhe faz sinal para calar. Deita-se de novo, cobrindo o colo com a capa. E fecha os olhos, confiante, enquanto o bruxo prepara-lhe um chá fortificante. Quando senta-se no catre, ao lado da mulher, ela lhe diz um simples “obrigada” e, antes de beber o chá, esclarece, sem dar motivos, que era a ele mesmo que procurava. Termina o chá e, ante o olhar inquisitivo de Malman, solta de novo a capa e abre o corpete, mostrando os imponentes seios de largas auréolas. Em seguida livra-se das saias, deixando à mostra o claro ventre e a sedosa coleção de pelos negros. Alça os braços e chama o bruxo para si.

Malman enlouquece ou cura-se. Num átimo está nu sobre a bela. Sorve-lhe os seios, beija-lhe a boca, penteia-lhe os cabelos, quer ver-lhe as coxas, beija a fenda úmida que encontra entre elas, prepara o caminho e entra na mulher como um tronco que se enraíza na terra. Vigorosamente vão se fundindo, acompanhando os compassos de uma música sobrenatural. Matam-se e revivem-se e tornam a matar-se. Mordem-se agora, animais da dor, do desespero e do prazer. Finalmente o prazer! E gozam.

Já é manhã e a luz do Sol entra pelas frestas da habitação. Os pássaros cantam e Malman desperta com o coração leve e feliz. Abre os olhos. E ela não está mais lá. Veste-se depressa e corre pela floresta, até chegar à clareira. Lá encontra a capa da mulher e, sobre ela, uma rosa vermelha. E ao ajoelhar-se para tomá-la, ouve ao longe uma canção que diz:

“É noite

e a Lua fria passeia no céu

entre nuvens escuras

que escondem as estrelas.

E quando a luz celeste consegue firmar-se

ilumina um vulto

cujo azul-escuro e o negro

perde-se na copa das árvores...

A noite mais uma vez se fecha

e a única claridade que se vê

diluída

é a da alva pele da Bela

entre as Brumas que levam seu nome...”

[18fev10]

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Para Dark Butterfly, uma amiga de outras paragens musicais.

Na Folia 2010

Ela disse tchau e já ia rumando pra porta quando ouve o marido reclamar: “já vai?... com quem vai?”. “Ôxi...”, diz ela, “com nossos amigos...” e, sem dar chance a mais conversa, fecha a porta atrás de si, rapidamente.

Na rua, já começa a saltitar. Escolhera um vestidinho verde, com um decote que deixa os ombros à mostra. O resto são colares e serpentinas penduradas no pescoço e uma corneta de papel colorido na mão. E vai depressa, serelepe, ao encontro dos amigos e do bloco.

Ele diz tchau e já ia rumando para a porta quando houve a mulher reclamar “outro dia de folia?... não vá se embebedar até cair, hein?...”. “Ôxi...”, diz ele, “...é uma vez por ano, meu bem...” e, sem dar chance a mais conversa, fecha a porta atrás de si, rapidamente.

Na rua, já começa a sambar. Botou no corpo uma sunga e, sobre ela, apenas um pareô, pra liberar geral quando pudesse. O resto são colares e serpentinas penduradas no pescoço e uma bisnaga de lança-perfume na mão. E vai depressa, tropeçando nas havaianas, ao encontro da aventura e do bloco.

O bloco reuniu-se no Largo do Varadouro e, quando chegaram, a zabumba já ia forte. Era frevo, era marchinha, era tudo. Alguns bonecos enfeitavam a passagem; fitas, confetti eram atirados de todas as partes; e bebia-se de tudo – batidas, limão, frevesi, e até rum montilla traçado. Água e refrigerante também.

Ele seguia pulando, não interessava o ritmo ou a marcha. E em certa altura o pareô quase caiu, deixando à mostra a sunga sem-vergonha e a bisnaga de lança enfiada nela. E ela seguia dançando, encantadora, sabendo todos os passos e todos os refrões – princesa rodeada por uma turma de marmanjas e marmanjos protetores.

No meio da batalha, quando já desciam a Saudade, os olhares se cruzaram. Ela o viu primeiro, sacolejando engraçado, esbaldando-se sem eira nem beira; ele a viu depois. Tentou se compor mas não deu – ele era ele e ela, ela. Entre piscadelas de um para o outro, beijos soprados no ar, flertes graciosos ou não, foram se aproximando, se aproximando. Em dado momento deram-se as mãos e ele puxou-a para uma travessa estreita.

Encostaram-se no vão de uma porta. Entre apertos e amassos, ela sentiu o pau dele, duro, encostado nas coxas, no ventre, conforme se arquitetavam no ar; e ele sentia-lhe o monte gozoso e a boceta entre os dedos. Conseguiu beijar-lhe um seio pequenino, apertá-lo. E ela, em troco, os grandes olhos bem abertos, beijou-o na boca, com a boca molhada de lábios adoráveis. Mas quando a coisa ia esquentando, e ela percebeu que teria que ser ali mesmo, conseguiu desembaraçar-se não soube como, e voltar lepidamente para a folia.

Ele, por mais que buscasse, não mais a encontrou. E depois de um intervalo meio desconsolado, arranjou-se com uma mulata celeste, indo desbarrancar por outro lado. Ela, comportada agora, brincou mais um pouco, ganhou chapéu multicolor, cantou e dançou até terminar o baticum.

À noite, ela fogosa cavalgou o marido. Ainda havia adrenalina e o sonho vivido que a tornavam amazona sem par. Ele, embora bêbado, encontrou o caminho e comeu a mulher de quatro, socando-lhe a fanfarra como herói de bangue-bangue – na cabeça a morena do bloco. Marido e mulher estranharam tanta vitalidade; mas, antes de cair no sono, espantaram as suspeitas... a final, era Carnaval...

Para V/, a foliã.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Finitude e Eterno

A glória de sermos humanos está na nossa temporariedade. Somos finitos porque em algum momento nascemos. E é este percurso que nos excita a vida, que nos faz amar amores, que nos pega a nossos filhos, protegendo-os. A existência do amor, entretanto, nos dá a certeza da eternidade. Ele salta obstáculos materiais e abstratos; portanto, como poderia ser finito? Sejamos finitos, pois, tenhamos medo, briguemos pela vida, conservemos a vida, torçamos para que não nos aconteça nada; mas eternos enquanto amarmos.

Um abraço, Musa.