"Grave Ameaça" -- este foi o título do editorial de O GLOBO desta quarta-feira, dia 1º. de novembro, comentando o constrangimento a que foram submetidos dois jornalistas da revista VEJA numa delegacia da Polícia Federal.
Que ironia, penso eu...
Durante a Ditadura, a meganhada armou dois braços civis da repressão: as delegacias estaduais de repressão aos crimes políticos (os DOPS) e a re-criada Polícia Federal, através das suas delegacias regionais. Estas duas polícias prenderam e arrebentaram quem se insurgia contra o regime, principalmente jornalistas.
Desde então, fixou-se em minha compreensão – por experiência própria e não por histórias contadas – que, não obstante o leva-e-traz de compadres que alimenta o noticiário policial, sempre haveria um conflito jacente entre a função da Imprensa e a da Polícia. Conflito esse que se tornaria claro numa situação “de exceção”, quando à Polícia é dada a missão de calar a população e à Imprensa a de informar a mesma população.
Há ocasiões, entretanto, em que a Imprensa e a Polícia celebram acordos de atuação conjunta. Lá pelos idos dos anos 90, quando era importante para gregos e troianos acabar com a arrogância do sinhozinho das Alagoas, firmou-se um pacto entre a Imprensa, a Polícia e o Ministério Público. Informações privilegiadas eram passadas de lá para cá e estouravam nos diários e semanários; enquanto que inquéritos policiais eram cevados por páginas e páginas do noticiário dos jornais, como se isso constituísse prova definitiva contra os cidadãos investigados; na dianteira do processo, jactava-se o Ministério Público do feito de haver dobrado esta ou aquela figura do governo. Tudo apoiado (e retro-alimentando) por um movimento patriótico que eletrizou a sociedade de cabo a rabo. Na realidade, nunca neste país o Ministério Público andou tão casado com a Polícia (antes tão criticada pelos nobres membros da Promotoria, que sempre a tachavam de corrupta e inepta), com quem caminhava a braços dados pelos corredores do Judiciário à cata de mandados variados.
Nesta época, tive a oportunidade de dialogar com vários jornalistas e de argumentar com eles sobre a irracionalidade de determinadas versões, mostrando uma fartura de documentos públicos em favor dos meus pontos-de-vista. Sempre me respondiam dizendo “mas o delegado tal e qual me disse o contrário”... e ponto final. Eu então retorquia: “vocês esqueceram que essa mesma polícia sentou a porrada em vocês? que torturou muitos de vocês? que matou? esqueceram de Vladimir Herzog? esqueceram das solenidades na ABI? esqueceram que polícia é polícia?”. Esse argumento final era sempre recebido com indiferença – no fim das contas, era essa mesma Polícia que fornecia as manchetes vendedoras de tiragens nunca vistas e guindavam pequenos focas a chefes de sucursal...
Bom... foi-se Collor, para gáudio de todos. Desde aqueles militantes que não conseguiram superar o amargor da derrota que sofreram nas urnas, até a classe média, indignada, que queria ver o sangue da cafajestada que governara o País por dois anos.
A aliança perfumada entre Imprensa, Polícia e Ministério Público (onde a militância já aflorava desassombradamente) produzira frutos. E assim continuaria pelos anos subseqüentes, a embaraçar governos e empresários (membros, ambos, das mesmas “quadrilhas que se dedicavam a roubar o erário e o povo”), tornando o noticiário político um caso de polícia e vendendo mais jornais que os conhecidos “banhos de sangue”.
E eis que desembocamos nos idos do Governo Lula. E vemos que ao embaraço inicial da prisão inopinada (e, depois, punida) de Duda Mendonça, sucedeu-se uma clara estratégia voltada a intensificar a demonstração de que “nunca em nenhum governo a polícia investigou e prendeu tanta gente”. O Ministro da Justiça, antes um ícone na defesa dos direitos humanos, comandou pessoalmente (mas na surdina) uma invejável investida contra “bandos de criminosos ricos”. Era preciso, como se sabe, mostrar – como no episódio da DASLU e dos juízes e deputados de Rondônia – que este era um governo que punia a elite em benefício do povo. E assim foi feito. Uma infinidade de operações – a maioria delas sem o menor cuidado técnico – foi declanchada; prisões foram feitas ao arremedo dos “irmãos do norte” – com o uso de cinturão e algemas nos pés – para encimar o cabeçalho das notícias e produzir efeito cinematográfico. Na cosmética de tais aparatos não faltavam as roupas negras, as viaturas tinindo de novas e o devido vazamento de conversas telefônicas coligidas em segredo de justiça. Não importa, é claro, que a coleta de provas nada conclua... sempre é possível acusar o Judiciário pela soltura deste ou aquele ladravaz... a Polícia Federal cumpre o seu papel... É o descarado uso da força policial em favor de uma corrente política no poder – a exemplo do que fez, com raro sucesso, o Pai dos Trabalhadores – Getúlio Vargas – citado por Lula como seu exemplo.
Disto tudo a Imprensa alimentou-se. E muito bem. Pouquíssimas vozes levantaram-se diante das irregularidades cometidas, do desvão em que se meteu a função pública, da sem-vergonhice marqueteira dos tiras. No bloco de trás, refestelou-se o Ministério Público – que sempre terá, como defesa do seu augusto traseiro, a possibilidade de ser comedido, imparcial, etc., etc., tudo “bullshit”.
Rola que rola, vai que vai, e há essa seqüência avassaladora de picaretagens as mais diversas envolvendo o partido no poder – o PT – e meeiros da convivência fiel e quotidiana de Lula, o Presidente da República. Neste momento, parte da militância (o “hard core” ideológico) já havia abandonado o barco, decepcionada, e juntou-se ao coro dos que queriam uma investigação profunda e arrasadora das atividades da quadrilha de aloprados. E a Imprensa imaginou que a aliança com a Polícia, conquistada durante o defenestramento de Collor, fosse continuar intacta nessa nova investida. Mas não foi bem assim...
Além de estar nas mãos de um articulador e Ministro do partido, polícia é polícia. Quer dizer: o compromisso da polícia é prender e arrebentar a mando do secretário ou ministro da pasta. Assim como “beque que se preza não almeja o Belfort Duarte” (frase genial do zagueiro Moysés, do Vasco – aquele que quebrou a perna do Garrincha num jogo amistoso com o Flamengo), não há tira que ganhe medalha de honra ao mérito por delicadeza. “Liberdade” é palavrão para policial; prender é o seu ofício. Policial que não prende é frouxo, inepto; tira que não pressiona, não arranca, não amedronta, não impõe, não machuca, não serve prá profissão. E não há aliança que altere essa natureza intrínseca do “ser” policial – indivíduos que andam “na escuta”, que “dão uma de mandrake”, que entregam uns aos outros por uma promoção e cujo sucesso está na medida da “autoridade” que impõem.
De outra parte, Ministério Público é Ministério Público. Se há uma situação nebulosa ou que não permita uma entrevista sob holofotes, a Promotoria andará por outras partes mais proveitosas, caçando presas mais gordas e evidentes. Porque esse é o seu mister – acusar – e assim luzir. Pensem bem: (a) o que é mais vil – defender um culpado ou acusar um inocente?; e (b) o que é mais nobre – acusar um culpado ou defender um inocente? Enquanto a advocacia tem um compromisso com a nobreza, o Ministério Público se refestela, muitas vezes, na vilania. O que esperar dele, então, quando a Polícia persegue a Imprensa? Exatamente o que fez a Procuradora Federal presente ao constrangimento dos jornalistas – negar a pressão.
Meus colegas advogados e eu pensamos o seguinte, já há muito tempo: estamos vivendo tempos complicados e embicando para uma situação pior que aquela que vivemos durante a Ditadura. Se naquela época terrível era difícil advogar, mas advogava-se; hoje há um movimento claro no sentido de negar defesa aos acusados. Escritórios são invadidos, telefonemas de advogados gravados, tudo exatamente de acordo com a propaganda que nos impingem os marketeiros auxiliares do partido no poder. Juntou-se a impaciência da população em face da reconhecida impunidade com o interesse escuso dos que desejam provar-se santos e divinos algozes. Como resultado, apressam-se todos a condenar suspeitos ao arrepio do devido processo legal (aquele direito fundamental que o cidadão tem de se ver processado de acordo com as regras do procedimento penal, que lhe garante ampla defesa e sem o qual a Polícia poderia desatar a prender e arrebentar sem qualquer freio).
Felizmente já se ouve a gritaria provocada pela ação da Polícia no caso dos jornalistas da VEJA. Que esse episódio acenda o sinal vermelho (ou, pelo menos, o amarelo) para os formadores de opinião e representantes do povo. Como diz o poema de Eduardo Alves da Costa, muitas vezes atribuído a Maiakovski:
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.
[01nov06]
Referência e comentários ao sucedido pode ser encontrada nos seguintes sites:
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/presidente-pt-volta-atacar-midia-cuidem-suas-redacoes-que-cuidamos-pt-democracia-deles/
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u86311.shtmlInteressante notar o andar da carruagem que levou o Judiciário a calar o "Estadão" durante o episódio Sarney, no ano que passou.