sábado, 27 de fevereiro de 2010

Um Jantar Para Sempre

As brasas espalhadas no asador criollo têm a mesma cor e a mesma forma - o mesmo DNA. Os anfitriões, um casal encantador, estão vivendo o melhor momento de suas vidas. A casa é acolhedora; o jardim bem tratado -- nele os convivas estão de pé ou sentados em bancos confortáveis. Falamos de quase tudo e todos têm interesse em ouvir a cada um. A conversa rola macia sob o céu estrelado de Mendoza. Há uma delicadeza despreocupada que nos faz nobres e elegantes.

Vamos à mesa e nos sentamos uns de frente para os outros. A meu lado uma senhora de mão bailarina e voz musical me orienta e fala-me sobre quem é quem. Nos servimos de coisas simples, mas perfeitas - asado, salada e batatas. Nos copos, um vinho vintenário, orgulho do anfitrião, elaborado para seu primeiro neto.

Alguém se levanta e vai buscar algo. Após, começo a escutar música brasileira interpretada por um duo argentino, que mescla tensão e leveza. Uma gentileza dos que me sabem de fora. Depois me regalam o CD.

Mais vinho, desta vez um quinze anos, buliçoso. A bebida nos faz mais alegres e as conversas começam a cruzar diagonais. Aprovamos a sobremesa -- algo levíssimo feito com dulce de leche, é claro.

Vamos de novo ao jardim. O anfitrião pergunta-me se quero un bajativo. Insiste e leva-me para dentro de casa. Mostra-me uma rara botella de vodka. Serve-se, bebe e me estende o copo. Bebo. Está selada a amizade.

Outra vez no jardim, comemos petit-fours e chocolatitos. Estamos com as maçãs do rosto avermelhadas. Falamos de bodegas, arquitetura e vinhos. Temas ali comuns. Aprendo novas histórias antigas e sinto-me um escolhido. Não é possível tanta perfeição, penso.

Mais adiante, a conversa começa a cochilar, por mera educação - como se os presentes entendessem, unânimes, que era o momento de, a pequenos passos, deixar os anfitriões. E de fato a hora de partir chega sem sobressaltos.

Finalmente, vamos aos carros, nos dizemos até logo. Sentimos muito deixar tão boa companhia, mas é necessário evitar emoções desconcertantes. E nos vamos todos ao mesmo tempo.

Esta história irá se repetir? Não creio. Há alguma sensação de perda, por ela haver terminado e não ser repetível? Não. Há algum tempo atrás, o pianista do nosso trio nos dizia "quem ouviu, ouviu, quem não, não tem repeteco, nem para nós mesmos". Este é o segredo da música ao vivo; e é um dos segredos da vida.

Hoje em dia compreendo bem que a experiência vivida lá está, e deve permanecer, intacta. O desejo de repetição ocorre quando desconhecemos que isto é impossível -- sempre frustei-me ao querer novamente à frente o que me havia ocorrido no passado. Bati em portas erradas, vi paisagens decadentes, e abracei relações encerradas -- melhor que tivessem ficado todos, como eram, sólidos e únicos, intocados e para sempre o que foram.

[27fev10]

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