terça-feira, 30 de março de 2010

Nós

como o plâncton que é atirado às rochas
por dezenas de anos
em sucessivas marés
e que um dia encontra lugar numa pequena fenda
e inicia sua calcárea vida
e é transformado em história e memória
que por sua vez move
a pergunta que faço
a mim
e a ti
se sabemos realmente a razão de sermos
como somos
se sabemos realmente a razão de estarmos
se realmente importa saber
por que estamos...

[30mar10]

terça-feira, 23 de março de 2010

Linimentos Espirituais - O Manejo do Álcool

Ontem eu estava tomando umas com o Pregador e o Ogan Luiz Carlos no furdunço do Jorjão de Ogun, em Vista Alegre, quando surgiu o papo do Mel Gibson.

O Pregador disse logo: “fudeu! esse cara chamou os JUDEUS de FILHASDASPUTAS quando todo mundo sabe que os FILHASDASPUTAS são os EVANGÉLICOS! Táva bebum mesmo!..."

Nosso querido ogan, que faz liturgia com Os Protocolos dos Sábios de Sião, tentou ainda desculpar Mel Gibson, argumentando que ele era um “cara legal e, se não fosse católico carismático, até que era um sujeito de bem”...

Vendo que a coisa ia desbordar pruma discussão sem fim, tentei falar dos males do alcoolismo e dos perigos de dirigir embriagado. O Pregador, então, percebendo um espaço prá revolver a coisa toda, perguntou ao Ogan Luiz Carlos como era isso de prá cada orixá uma bebida.

Provocado, o famoso ogan nos explicou, com toda a proficiência, que devíamos ter bastante cuidado com as bebidas que oferecíamos aos santos, já que, qualquer engano, era uma porrada de volta nos cornos do fiel [tap-tap-tap].

E continuou – [tap-tap-tap] “Para Xangô”, disse o ogan, “sempre cerveja; de preferência preta... para Ogun, também cerveja, de preferência branca... para Oxalá, nunca outra coisa se não vinho tinto... para Yemanjá, Oxum e Nanã, água mineral... SEM gás...”...

“E para Exu?”, atalhou o sacana do Pregador. “Para Exu?”, perguntou de volta o ogan... “Para Exu?” [tap-tap-tap], prosseguiu o ogan, “... para Exu sempre uma cachacinha, hehehe, NÃO adoçada, sendo que para os exus do plano serve também um destilado qualquer [tap-tap-tap], como um uísque e até uma vodka...”

“Ahhhh...”, fez de entendido o Pregador, “... então, do jeito que tu bebe, se tu fosse rodante tu ia viver com Exu na cabeça...”

[tap-tap-tap], bateu com os cascos o Ogan Sapateador. “É agora!!! Fudeu!!!”, disse eu prá mim mesmo. E não deu outra: em um segundo távam os dois saindo nos tabefes e na porrada e eu e o Jorjão de Ogun tentando apartar, e a mulher do Jorjão entrando no meio, e o sarrafo comendo, e o furdunço quebrando, e a polícia chegando e todo mundo indo prá delegacia.

O delegado, que era da Universal, assim que ouviu a história, e percebendo que a gente era do santo, enquadrou todo mundo. E aí, o Pregador, num momento de brilho, começou a gritar “O SANGUE DE JESUS SALVA, O SANGUE DE JESUS SALVA, O SANGUE DE JESUS SALVA”. E o delegado, vendo uma possibilidade de conduzir um descarrego e ser guindado a pastor, ali mesmo, naquele estabelecimento policial, conduziu a maior sessão com a gente.

No final de tudo, o Ogan Luiz Carlos, muito puto por ter sido descarregado, já do lado de fora da polícia, quase quis pegar o Pregador de porrada de novo. Mas aí a voz da razão espiritual se fez presente. E nós ali, sentindo a presença das entidades à nossa volta, batemos pro santo subir e nos mandamos pro puteiro da Geni.

[18ago06]

segunda-feira, 22 de março de 2010

Nós Três

somos três círculos

secantes

juntos formamos

uma rosácea

as pontas um triângulo

ela o mistério sutil

ela a polpa da fruta

eu cabeça e tronco

o único membro.

cada um tem um pedaço

do pedaço do outro

e os três dividem o centro

o vórtice comum

o desfiladeiro único

a praça de guerra

a cama

o prato

a estrela.


[22mar10]

quinta-feira, 18 de março de 2010

Galileu

Ao se exonerar

Galileu escondeu na algibeira

o sorriso maroto e

a memória da torre

olhou pela janela e viu

em desigual descendente

a piuma e o piombo

e pensou como deveras

la donna era mobile.

[14set09]

terça-feira, 16 de março de 2010

A Doença - II

É mais ou menos farta a literatura que procura entender a doença como estigma. De certa forma todos sentimos o peso do luto quando ficamos doentes ou temos um ente querido que passa por uma fase de saúde ruim.

O luto afasta as pessoas; e conheço muitas delas que se mantêm à distância de parentes e amigos doentes. É como se sentissem o perigo da contaminação -- seja da doença em si ou da tristeza que ela carrega.

Paro para pensar e recordo-me da última vez em que estive realmente enfermo. Sofri uma cirurgia grave e a recuperação foi difícil e dolorosa. Entretanto, não me senti pejado por nada disso. Foi uma excelente oportunidade que tive de recompor minha vida e priorizá-la acima das pequenas chatices e dos aborrecimentos triviais. Saí do hospital com a mente mais saudável do que esteve durante muitos anos de minha vida. Ficou-me apenas um travo -- a ausência de algumas pessoas amadas. Não porque percebi algum descaso. Mas porque não entenderam a fantástica oportunidade que a doença traz para que priorizemos o importante.

Neste momento sinto que perdi um tanto da energia vitalizante que me preencheu quando saí do hospital; mas minha percepção de mudança de ânimo continua a mesma. Há dois amigos em minha rede que estão passando pelo momento muito difícil de terem familiares em processo terminal. Desejo a eles o que passou-se comigo. E que seja duradouro!

[16mar10]

sexta-feira, 12 de março de 2010

Mathias, o Pintor

A cozinha é uma balbúrdia de restos de comida e pratos sujos. Coadores de papel entopem a pequena pia e o cheiro adocicado de pó de café úmido é nauseante.

No apartamento de um só cômodo, guimbas e cinzas de cigarro por toda a parte e mais restos de comida, pratos e copos sujos compõem o set. Num canto, atirado sobre um colchão que se desfaz, Mathias encolhe-se na posição fetal, tentando manter um tanto de calor no corpo que a pequena manta de chenille mal cobre.

Contra a parede oposta à cozinha, muitas telas de vários tamanhos. Algumas usadas, outras preparadas, outras ainda nuas. No chão, espalhados, esboços a lápis e vermelhão; tintas, pincéis e palhetas revelam que Mathias é um pintor, um artista!

Na tarde anterior Mathias havia dado mais uma volta pelas galerias de São Paulo. Sempre galerias com nomes de mulher – Luisa, Berenice, Ana Cláudia, Nara, Mônica e, finalmente, a galeria da belíssima Rejane Tacchi, no Brooklin. O pintor confiava que daria sorte com uma dessas mulheres-galerias. E sempre recebia uma resposta educada, mas negativa. “Não é bem a linha do nosso projeto”, diziam, enquanto examinavam o book de Mathias; ou “Ainda falta maturidade no seu trabalho...”, e ainda “Lamento, mas nosso público é outro...”. “Mulheres...”, pensava ele, “... podem ser muito cruéis...”.

Voltando ao presente, vemos Mathias levantar-se de seu catre, puxar para si e para cima um par de calças manchadas, vestir o único suéter, verificar que não há mais cigarros disponíveis, coçar-se, tomar um gole de água da bica da pia e sair, tendo o cuidado de trancar a porta para que não lhe viessem a roubar os artefatos e as telas.

Desce então a Augusta para esticar as pernas. Cerra a mão dentro do bolso, onde traz as últimas pratas de suas posses, e toma a direção da primeira banca de jornais, onde lê as manchetes do dia e compra alguns cigarros avulsos.

Quase apagando de fome, Mathias entra numa lanchonete e senta-se ao balcão. Pede um pedaço de pizza e um genebra. O garçon, vendo o estado do cliente, serve-o com desconfiança e má vontade. Mal terminou de engolir o primeiro pedaço, ele pede o segundo. E aí põe-se a comer com vagar, apreciando cada mordida, que vai temperando com um golinho da bebida.

Tão distraído está Mathias, no seu afazer de comer, pensando ali com seus botões em como se safaria da porrada quando avisasse que não pagaria o consumo, que não notou a presença tranqüila da musa, que entrou e sentou-se a seu lado. “Você está com fome, hein...” disse-lhe ela. Mathias não respondeu. Preferiu concentrar-se inteiramente no frugal repasto.

“Bem... posso pagar-lhe outro pedaço?” insistiu a musa. Neste momento, o pintor conteve-se: atraído pela possibilidade de um banquete, mas utilizando de toda a artimanha aprendida na Belas Artes, respondeu com a cabeça, fazendo-se de indiferente. A compreensiva e maternal musa pediu, então, mais um pedaço de pizza e um refill.

Ficaram ali sentados, Mathias comendo e a musa assistindo. Até que, paga por ela a conta, saíram juntos – o pintor caminhando à frente e a musa tentando manter o passo.

Chegando à metade do quarteirão, Mathias dignou-se a olhar para o lado e finalmente a viu. E ficou paralisado. A musa tinha o rosto, os traços, a tez, o cabelo, as proporções que ele andara debalde procurando em tantas modelos que passaram pela kitchenette/ateliê. A musa, percebendo que finalmente o artista a vira, apresentou-se: “Meu nome é Mercedes”.

Mathias sequer apertou a mão que Mercedes lhe estendia. Passou-lhe o braço pelos ombros e tratou de propor que posasse para ele. “Um nu?”, perguntou ela, “Qualquer coisa, qualquer coisa”, respondeu ele, ansioso.

E enquanto Mercedes sorria e Mathias fingia [“O Poeta é um fingidor...”, já dizia Fernando Pessoa], foram caminhando em direção ao decadente edifício onde, no pequeno apartamento de fundos vivia, sonhava e padecia Mathias.

Subiram as escadas e entraram em casa. Mercedes, prudentemente, evitou sentar-se. E Mathias, pressuroso, desculpou-se por não ter nada a oferecer. Abrindo os braços, mostrou que o único bem que tinha eram seus quadros e sua arte. Mercedes sorriu, eis que musa era e sabia. Mathias interpretou mal o sorriso mas não deu bola e disse... “Sente, por favor”. E sentou-se ele primeiro, na borda do catre.

Depois de algum tempo sem ter o que falar, Mathias levantou-se e começou um longo discurso sobre a procura da musa, descrevendo quantas e quantas vezes, em agonia criativa, tentara imaginar a musa sem nunca tê-la tido por perto. Contou, também, sobre as inúmeras vezes em que visitou as galerias-mulheres, sem sucesso, concluindo que, agora que havia conhecido Mercedes, acreditava que seu trabalho ganharia fama e suas telas seriam disputadas em mostras permanentes não só em São Paulo, mas também em Londres, Paris e Nova Iorque.

E falou tanto que Mercedes, condoída, abraçou-o e disse-lhe que posaria como Mathias quisesse, despindo-se prontamente e oferecendo-lhe um nu majestosamente belo. Ao que Mathias de novo ficou paralisado. É que o nu de Mercedes era perfeito – já vinha com as cores, sombra e luz, tonalidades e matizes prontos. Bastava colocá-la em posição, armar o cavalete, prender a tela, buscar tintas e pincéis e... pronto!

E, assim feito, começou Mathias a pintar seu capolavoro. Observava Mercedes, media proporções e, em pinceladas largas e precisas, tratava de transmitir à tela a emoção que o impacto visual da musa lhe causava. Trabalhou por horas, pausando de quando em quando para que Mercedes descansasse. Às vezes pedia que ela mudasse de posição para ver um detalhe de forma ou de cor de outro ângulo; às vezes quedava pensativo, depois aproximava-se e dava-lhe um beijo agradecido na fronte.

A seção estendeu-se até que, de repente, Mercedes deu-se conta da hora avançada e, consciente da mundana realidade de ser uma mulher casada, levantou-se e vestiu-se rapidamente, sem aceitar os pedidos de clemência do artista. Antes de bater a porta atrás de si – diante de um Mathias novamente paralisado – Mercedes prometeu voltar no dia seguinte. Então ele jogou-lhe as chaves para que entrasse quando quisesse. Atirou-se em seguida ao catre revolto, completamente vestido, para mais uma noite de sono atormentado.

Ao acordar com a luz da tarde ferindo-lhe os olhos, Mathias deu-se conta da mudança havida no apartamento. Tudo reluzia e estava ordenado. E, ao lado de um bule de chá ainda quente, leu a notinha deixada por Mercedes: “Volto daqui a meia hora”.

Levantou-se, coçou-se e foi até a cozinha onde – surpresa! – encontrou sobre a pia, agora escarolada, um prato limpo, com bolinhos e pãezinhos. Voltou e, gulosamente, provou cada bolo e cada pão com goles do chá vivificante preparado por Mercedes. E levava ainda a xícara à boca quando abre-se a porta de casa e adentra a alegre musa.

Sem muita conversa, apronta-se o pintor em seu canto atrás do cavalete e volta Mercedes, logo nua, à posição original da modelagem. Mathias torna a trabalhar com intensidade. Dedica-se de corpo e alma ao processo criativo. Sente que passa por estados alterados de consciência, que entra e sai de transes e que usa a técnica como se ela não passasse pela razão mas por algum caminho novo, paranormal. Não vê o passar das horas, não sente cansaço ou fome, é apenas o instrumento de um milagre...

E novamente Mercedes levanta-se, veste-se e sai. E Mathias quase não se dá conta. Pinta de memória, quase às escuras, iluminado pela única lâmpada que pende do teto do aposento, jorrando 60 watts sobre a cena. Até que exausto, passada a noite em claro, atira-se o pintor de novo ao catre. Inconsciente, sem banho, mas feliz...

Já vai a tarde a bom caminho quando, no terceiro dia, volta Mercedes ao refúgio. E já está nua quando tenta acordar Mathias que segue desacordado em seu cantinho. Pausando, a musa vai ver pela primeira vez a tela. E é sua vez, então, de quedar paralisada: lá estão, reencarnados em uma só figura, os nus de Degas , Renoir, Manet, contrastados pelo chiaroscuro de Velásquez. Era realmente um capolovoro svegliato. E a musa reconheceu-se inteira, toda ela, na tela.

Emocionada, Mercedes senta-se ao lado do corpo inerme de Mathias. Passa-lhe os dedos nos cabelos, afaga-lhe o rosto e beija-lhe a cabeça, grata. Mathias, com o carinho, desperta. Abre os olhos e dá com Mercedes despida à sua frente e, pela primeira vez, a vê como mulher. Observa não mais a musa de contornos perfeitos, mas a amante de mímica rica, de lábios cor de cereja, de pernas fortes e de braços de abraços.

Deita-se de novo. E Mercedes agacha-se sobre ele. Deixa que ele examine e perscrute seu âmago. Tira proveito do carinho íntimo que lhe faz o pintor. Ele agora pinta o seu ventre com a língua. E ela agradecida e inspirada toma-lhe o membro com a boca. E chega rapidamente a hora de tornar-se a deusa tântrica: virando-se e comendo-o por cima, deixa que ele fixe o olhar no seu olhar. E repletos pela força da obra concebida, musa e artista tornam-se a imagem de Deus criador e onipotente, gozando à balda, à forra, à vida.

Mathias então desmaia com Mercedes ainda sobre ele. Ao acordar, noite alta, sente dolorosamente a falta da musa. Procura-a primeiro com o olhar, depois com as mãos. Levanta-se e, de um passo, cruza todo o apartamento. E se dá conta: na porta, as chaves emprestadas e, ao pé da tela, cuidadosamente dobrado, um maço de notas de cinqüenta.

[10set09]

domingo, 7 de março de 2010

Ciclos

Desde pequeno gosto da companhia dos mais velhos. Nas festas de final-de-ano, nos aniversários de família, sempre preferia ouvir as histórias de algum tio-avô a brincar com meus primos e primas. Os relatos eram repletos de detalhes curiosos e de memórias sobre um Rio, sobre uma época, que eu não conhecia...

A casa de meus três tios-avós era ali em Ipanema, onde agora ergue-se um edifício de luxo. Lembro que aquilo que era má notícia para os primos – visitar os velhos – era um prêmio para mim. Os móveis, a arquitetura da casa, o Citroen 11B, tudo era uma lição de art deco, que me fascinava. E as histórias, então, eram só para meus ouvidos e para a minha curiosidade. Fui crescendo e fui vendo meus tios-avós irem embora. Na última visita que fiz à casa, herdei algumas peças que guardo até hoje.

Agora vivo na parte mais jovem da cidade – de amplos espaços e arquitetura banal – onde moro num prédio onde residem muitos idosos. No meu dia-a-dia cruzo com um bom número de casais de velhinhos, que me cumprimentam simpáticos. Abro e seguro portas, faço comentários sobre o dia, e nutro o afeto que me dão. Alguns deles ficaram meus amigos desde o dia em que mudei; outros, com o tempo, foram se aproximando. De uma senhora ouço os lamentos de abandono familiar e procuro dizer palavras otimistas, que sei inúteis. Percebo achaques e mudanças na vida de meus amigos anciãos – este passou a usar uma bengala, aquele teve um AVC e se recupera, aquela teve problemas nos joelhos, operou-se e usa a piscina para se exercitar, dois deles perderam os cabelos na quimio... Vão todos ficando mais velhos ainda, curvados, secos; mas sigo amigo deles e, quando os vejo, saúdo-os com sincera alegria.

O triste deste convívio com os mais velhos é que todo o mês há uma nota de falecimento no hall dos elevadores. E lá vejo o nomezinho ou a foto de um vizinho que se foi. Recordo sua figura, abraço-o em meus pensamentos, arrepanho algum ensinamento que me deixou, penso no término de minha própria vida, peço por sua paz e digo adeus. Às vezes remôo um pensamento turvo – o abandono em que ficam aqueles velhos ao final de suas vidas, quando os filhos já se foram para outros lugares e os netos já estão crescidos e indiferentes. Tenho essa visão do fechamento de suas casas, da repartição de móveis e as pequenas riquezas que ainda restavam, da doação de roupas e objetos sem valor, como pares de óculos, talheres descasados, cacarecos...

Ontem mesmo isso ocorreu de novo. E lá estava o retratinho simpático do meu amigo no hall, junto a algumas palavras delicadas dos amigos e à marcação do velório e do enterro. E uma vez mais cumpri o processo de despedida. Só que, desta vez, ao terminá-lo, imaginando a partilha que provavelmente ocorreria em seguida, veio-me um pensamento interessante, que nunca havia entretido antes: a venda do apartamento de meu idoso amigo, traria para o edifício, com toda a probabilidade, uma jovem família – gente que ali criaria os filhos, participaria das reuniões do condomínio, se interessaria pela renovação dos elevadores e do hall de entrada, procuraria uma alternativa para economizar água e energia. Gente que traria consigo uma rede de novos amigos, de parentes, de crianças. De crianças...

A percepção do ciclo que se abre com o fechamento de outro ciclo encheu-me de boa vontade. Voltei à imagem do espiroqueta do DNA, um parafuso girando para frente, sempre. Voltei à compreensão do poder fertilizador do húmus. Voltei à dinâmica do movimento, à energia cinética, a tudo aquilo que nos propele. E, então, a idéia da morte expirou. Tornei a sentir-me parte da cadeia da eternidade e a acreditar que, quanto mais pequenino sou, no espaço e no tempo, mais sou capaz de dissolver-me e tornar-me o todo em um. “Tudo é significante!”, pensei, e de novo abracei meu amigo que agora sabia, para sempre, presente.

[07mar10]

sexta-feira, 5 de março de 2010

Poeminha de Fim de Ano

Carélia Finesa

ah, façam-me o obséquio
não me recordem mais
dos livros de Geografia
nem do Gaspar de Freitas
deixem-me aqui quieto e zozegado
neste presente do futuro
vestindo minhas chinelas tão amáveis
e lendo o JB de cabo a rabo.

não quero mais saber
de caminhadas matinais
historietas infernais
rostinhos angelicais
bundas sesquipedais
fabinhas invernais
meliss@s nos varais
jazz e tudo o mais...

deixem-me apreciar
a memória e a imaginação
dos anos idos e dos vindos
provar dos vinhos doces
da eucaristia
orar todas as noites
e persignar-me com freqüência
cumprimentar vizinhos e vizinhas
(até os mais sovinas
até as mais feinhas)
e roncar o ronco dos avós
suave e caminhando para o silêncio
dêem-me apenas essa grata aventura
da poltrona do papai
do cachimbo meio aceso
das meninas do Faustão
e da sonolência das 5.

é que já não presto
meus queridos
para os demônios conhecidos
para a afobação das novidades
para as taquicardias dos intróitos
para aquela febre galopante
para as maquinações rocambolescas
para as rainhas ou princesas
dos desejos do atacado
ou dos amores do varejo.

quero fazer jus
irmãozinhos, irmãzinhas
a meu torrão definitivo
a uma lápide bem limpinha
que me exalte as qualidades:
um pau médio e delicado
um certo humor profano
e essas mãos aqui
vizinhas e macias.

[dezembro de 2010]

segunda-feira, 1 de março de 2010

Oxalá

Nenhum orixá é de fácil compreensão. Identificar as características de um orixá, incorporá-las, é tarefa que requer o uso da razão e o sentimento espiritual. Dentre todos os orixás, são os mais velhos os mais difíceis de lidar e entender. Carregam em si tanta contradição, e tantas lendas que atravessam tempos diferentes, que fixar uma definição para eles é exercício pedregoso e muitas vezes árido.

E Oxalá - Oxalufan - é o mais velho entre os mais velhos. Por isso tem a ver com a história do Mundo e com todos os demais orixás, misturando-se a eles nas lendas e nas cabeças dos filhos. É companheiro de Obaluaê, pai de Oxum, esposo de Yemanjá e Nanã, vizinho de Tempo, e tem altos e baixos com Exú e Xangô (coisa apenas aparente, é claro, mas que gera dúvidas e incertezas).

Sinto a presença de Oxalá como o ar e a água que me envolvem, mas não me comandam. Aliás, Oxalá não ordena, não mostra a seus filhos o caminho do Bem e do Mal - ao contrário: entrega-lhes a decisão sobre seu destino, sem dar pistas de qual o caminho a seguir. Assim, com a porta do livre arbítrio aberta para eles, ficam os filhos de Oxalá muitas vezes inertes. E isto pode nos levar a crer que a energia de Oxalá é a mesma da inércia, da estagnação e, por último, da pulsão da Morte. Digo que é um engano esta crença - aceitá-la seria ignorar a força libertadora que reside em Oxalá, força que sinto com meu coração e minha mente.

Há outras tantas visões de Oxalá; umas que ressaltam sua oposição a Exu e outras que o associam à primazia de Olorum, o Criador de Tudo, afirmando ser ele o pai de todos os demais orixás. Tudo isto, entretanto, são tentativas de prender Oxalá numa gaiola. Melhor fazer o seguinte: abrir os braços bem abertos, fechar os olhos, respirar compassada e silenciosamente e entregar-se ao "nada". Isto é tudo.

Dois Prazeres

Nestes dois últimos dias tive dois prazeres: a leitura de uma crônica de Rubem Braga ("O Sino de Ouro") e ver, novamente, "Sete Noivas para Sete Irmãos".

Embora distintos em profundidade e alquimia, foram prazeres que entre si guardam certa relação. A crônica bem escrita do Velho Braga, como tantas outras crônicas que dele já li, revela-me o inefável, a possibilidade de um "falar com Deus", e envergonha-me em minha pretensão de escritor. Me faz recordar um poema de Pessoa, tal a forma como me arranca de mim e me eleva; mas também me recorda de um bendito dia em que, acanhados e amadores, abrimos um show porreta do Edu Lobo na PUC do Rio de Janeiro...

Já o "Sete Noivas..." recorda-me os dias de matiné com minha mãe, quando ela buscava mostrar-me essa mágica do encontro da dança com a música e o canto. Com ela aprendi a juntar todas as artes e a compreender uma através da outra. Com ela também aprendi a encantar-me com o teatro e o cinema, e com todos os ofícios que constroem um espetáculo. Não por acaso era dela o livro de Rubem Braga do qual li a crônica, assim como eram dela os livros de Pessoa, de Eça, Lorca e tantos outros que agora se aprumam nas minhas estantes.

No final desses dias em que li e vi, fiz uma volta possível ao mundo feliz em que toco minha alma e ela voa, dona de si, para onde quer...