sexta-feira, 12 de março de 2010

Mathias, o Pintor

A cozinha é uma balbúrdia de restos de comida e pratos sujos. Coadores de papel entopem a pequena pia e o cheiro adocicado de pó de café úmido é nauseante.

No apartamento de um só cômodo, guimbas e cinzas de cigarro por toda a parte e mais restos de comida, pratos e copos sujos compõem o set. Num canto, atirado sobre um colchão que se desfaz, Mathias encolhe-se na posição fetal, tentando manter um tanto de calor no corpo que a pequena manta de chenille mal cobre.

Contra a parede oposta à cozinha, muitas telas de vários tamanhos. Algumas usadas, outras preparadas, outras ainda nuas. No chão, espalhados, esboços a lápis e vermelhão; tintas, pincéis e palhetas revelam que Mathias é um pintor, um artista!

Na tarde anterior Mathias havia dado mais uma volta pelas galerias de São Paulo. Sempre galerias com nomes de mulher – Luisa, Berenice, Ana Cláudia, Nara, Mônica e, finalmente, a galeria da belíssima Rejane Tacchi, no Brooklin. O pintor confiava que daria sorte com uma dessas mulheres-galerias. E sempre recebia uma resposta educada, mas negativa. “Não é bem a linha do nosso projeto”, diziam, enquanto examinavam o book de Mathias; ou “Ainda falta maturidade no seu trabalho...”, e ainda “Lamento, mas nosso público é outro...”. “Mulheres...”, pensava ele, “... podem ser muito cruéis...”.

Voltando ao presente, vemos Mathias levantar-se de seu catre, puxar para si e para cima um par de calças manchadas, vestir o único suéter, verificar que não há mais cigarros disponíveis, coçar-se, tomar um gole de água da bica da pia e sair, tendo o cuidado de trancar a porta para que não lhe viessem a roubar os artefatos e as telas.

Desce então a Augusta para esticar as pernas. Cerra a mão dentro do bolso, onde traz as últimas pratas de suas posses, e toma a direção da primeira banca de jornais, onde lê as manchetes do dia e compra alguns cigarros avulsos.

Quase apagando de fome, Mathias entra numa lanchonete e senta-se ao balcão. Pede um pedaço de pizza e um genebra. O garçon, vendo o estado do cliente, serve-o com desconfiança e má vontade. Mal terminou de engolir o primeiro pedaço, ele pede o segundo. E aí põe-se a comer com vagar, apreciando cada mordida, que vai temperando com um golinho da bebida.

Tão distraído está Mathias, no seu afazer de comer, pensando ali com seus botões em como se safaria da porrada quando avisasse que não pagaria o consumo, que não notou a presença tranqüila da musa, que entrou e sentou-se a seu lado. “Você está com fome, hein...” disse-lhe ela. Mathias não respondeu. Preferiu concentrar-se inteiramente no frugal repasto.

“Bem... posso pagar-lhe outro pedaço?” insistiu a musa. Neste momento, o pintor conteve-se: atraído pela possibilidade de um banquete, mas utilizando de toda a artimanha aprendida na Belas Artes, respondeu com a cabeça, fazendo-se de indiferente. A compreensiva e maternal musa pediu, então, mais um pedaço de pizza e um refill.

Ficaram ali sentados, Mathias comendo e a musa assistindo. Até que, paga por ela a conta, saíram juntos – o pintor caminhando à frente e a musa tentando manter o passo.

Chegando à metade do quarteirão, Mathias dignou-se a olhar para o lado e finalmente a viu. E ficou paralisado. A musa tinha o rosto, os traços, a tez, o cabelo, as proporções que ele andara debalde procurando em tantas modelos que passaram pela kitchenette/ateliê. A musa, percebendo que finalmente o artista a vira, apresentou-se: “Meu nome é Mercedes”.

Mathias sequer apertou a mão que Mercedes lhe estendia. Passou-lhe o braço pelos ombros e tratou de propor que posasse para ele. “Um nu?”, perguntou ela, “Qualquer coisa, qualquer coisa”, respondeu ele, ansioso.

E enquanto Mercedes sorria e Mathias fingia [“O Poeta é um fingidor...”, já dizia Fernando Pessoa], foram caminhando em direção ao decadente edifício onde, no pequeno apartamento de fundos vivia, sonhava e padecia Mathias.

Subiram as escadas e entraram em casa. Mercedes, prudentemente, evitou sentar-se. E Mathias, pressuroso, desculpou-se por não ter nada a oferecer. Abrindo os braços, mostrou que o único bem que tinha eram seus quadros e sua arte. Mercedes sorriu, eis que musa era e sabia. Mathias interpretou mal o sorriso mas não deu bola e disse... “Sente, por favor”. E sentou-se ele primeiro, na borda do catre.

Depois de algum tempo sem ter o que falar, Mathias levantou-se e começou um longo discurso sobre a procura da musa, descrevendo quantas e quantas vezes, em agonia criativa, tentara imaginar a musa sem nunca tê-la tido por perto. Contou, também, sobre as inúmeras vezes em que visitou as galerias-mulheres, sem sucesso, concluindo que, agora que havia conhecido Mercedes, acreditava que seu trabalho ganharia fama e suas telas seriam disputadas em mostras permanentes não só em São Paulo, mas também em Londres, Paris e Nova Iorque.

E falou tanto que Mercedes, condoída, abraçou-o e disse-lhe que posaria como Mathias quisesse, despindo-se prontamente e oferecendo-lhe um nu majestosamente belo. Ao que Mathias de novo ficou paralisado. É que o nu de Mercedes era perfeito – já vinha com as cores, sombra e luz, tonalidades e matizes prontos. Bastava colocá-la em posição, armar o cavalete, prender a tela, buscar tintas e pincéis e... pronto!

E, assim feito, começou Mathias a pintar seu capolavoro. Observava Mercedes, media proporções e, em pinceladas largas e precisas, tratava de transmitir à tela a emoção que o impacto visual da musa lhe causava. Trabalhou por horas, pausando de quando em quando para que Mercedes descansasse. Às vezes pedia que ela mudasse de posição para ver um detalhe de forma ou de cor de outro ângulo; às vezes quedava pensativo, depois aproximava-se e dava-lhe um beijo agradecido na fronte.

A seção estendeu-se até que, de repente, Mercedes deu-se conta da hora avançada e, consciente da mundana realidade de ser uma mulher casada, levantou-se e vestiu-se rapidamente, sem aceitar os pedidos de clemência do artista. Antes de bater a porta atrás de si – diante de um Mathias novamente paralisado – Mercedes prometeu voltar no dia seguinte. Então ele jogou-lhe as chaves para que entrasse quando quisesse. Atirou-se em seguida ao catre revolto, completamente vestido, para mais uma noite de sono atormentado.

Ao acordar com a luz da tarde ferindo-lhe os olhos, Mathias deu-se conta da mudança havida no apartamento. Tudo reluzia e estava ordenado. E, ao lado de um bule de chá ainda quente, leu a notinha deixada por Mercedes: “Volto daqui a meia hora”.

Levantou-se, coçou-se e foi até a cozinha onde – surpresa! – encontrou sobre a pia, agora escarolada, um prato limpo, com bolinhos e pãezinhos. Voltou e, gulosamente, provou cada bolo e cada pão com goles do chá vivificante preparado por Mercedes. E levava ainda a xícara à boca quando abre-se a porta de casa e adentra a alegre musa.

Sem muita conversa, apronta-se o pintor em seu canto atrás do cavalete e volta Mercedes, logo nua, à posição original da modelagem. Mathias torna a trabalhar com intensidade. Dedica-se de corpo e alma ao processo criativo. Sente que passa por estados alterados de consciência, que entra e sai de transes e que usa a técnica como se ela não passasse pela razão mas por algum caminho novo, paranormal. Não vê o passar das horas, não sente cansaço ou fome, é apenas o instrumento de um milagre...

E novamente Mercedes levanta-se, veste-se e sai. E Mathias quase não se dá conta. Pinta de memória, quase às escuras, iluminado pela única lâmpada que pende do teto do aposento, jorrando 60 watts sobre a cena. Até que exausto, passada a noite em claro, atira-se o pintor de novo ao catre. Inconsciente, sem banho, mas feliz...

Já vai a tarde a bom caminho quando, no terceiro dia, volta Mercedes ao refúgio. E já está nua quando tenta acordar Mathias que segue desacordado em seu cantinho. Pausando, a musa vai ver pela primeira vez a tela. E é sua vez, então, de quedar paralisada: lá estão, reencarnados em uma só figura, os nus de Degas , Renoir, Manet, contrastados pelo chiaroscuro de Velásquez. Era realmente um capolovoro svegliato. E a musa reconheceu-se inteira, toda ela, na tela.

Emocionada, Mercedes senta-se ao lado do corpo inerme de Mathias. Passa-lhe os dedos nos cabelos, afaga-lhe o rosto e beija-lhe a cabeça, grata. Mathias, com o carinho, desperta. Abre os olhos e dá com Mercedes despida à sua frente e, pela primeira vez, a vê como mulher. Observa não mais a musa de contornos perfeitos, mas a amante de mímica rica, de lábios cor de cereja, de pernas fortes e de braços de abraços.

Deita-se de novo. E Mercedes agacha-se sobre ele. Deixa que ele examine e perscrute seu âmago. Tira proveito do carinho íntimo que lhe faz o pintor. Ele agora pinta o seu ventre com a língua. E ela agradecida e inspirada toma-lhe o membro com a boca. E chega rapidamente a hora de tornar-se a deusa tântrica: virando-se e comendo-o por cima, deixa que ele fixe o olhar no seu olhar. E repletos pela força da obra concebida, musa e artista tornam-se a imagem de Deus criador e onipotente, gozando à balda, à forra, à vida.

Mathias então desmaia com Mercedes ainda sobre ele. Ao acordar, noite alta, sente dolorosamente a falta da musa. Procura-a primeiro com o olhar, depois com as mãos. Levanta-se e, de um passo, cruza todo o apartamento. E se dá conta: na porta, as chaves emprestadas e, ao pé da tela, cuidadosamente dobrado, um maço de notas de cinqüenta.

[10set09]

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