Antão era o armeiro do lugar. Bom armeiro era, mas não gostava do nome que lhe deram, em homenagem a Santo Antão, o Anacoreta. Preferia Antonio ou João, mas Antão era. E resignadamente seguia armando como se Antonio ou João fora.
O fabrico de uma boa espada demanda a forja, composta do fole, da bigorna, dos martelos e do tanque. Mais que isso: é necessário que se bata com força e bem; ser preciso nos golpes que dão forma ao metal; e saber o momento de temperar o ferro para as suas diversas serventias. Isso aprendera Antão como aprendiz de um tio, já que o pai era pedreiro e não armeiro e o tio se dispusera a ensinar ao menino as artes da sua guilda.
Seja como seja, Antão fazia bem o seu trabalho, e a clientela estava satisfeita; além disso, era o armeiro do vilarejo, já o dissemos, e embolsava uma razoável quantia já que, por ali, todos os varões andavam às guerras; e, se não às guerras, à cata de adereços portentosos para louvar-se às raparigas. Era feliz, assim, o nosso Antão, e o dizemos nosso pois que por ele temos carinho enorme.
No cantar do martelo contra o ferro Antão saboreava seu segredo: mais que às espadas, lhe aprazia fabricar as bestas. Era particularmente cuidadoso na escolha das madeiras e no lustrar delas. E terminava por adoçar as curvas cavoucadas com o óleo natural das próprias mãos que passava e repassava, geralmente à noite, sobre coronhas e ombreiras. Era também esperto em criar setas de rara perfeição, cuja ponta destinava-se a perfurar as mais rijas couraças. E de tal modo eram perfeitas as bestas e setas das artes de Antão que, se o soubessem, viriam os de longe apreciá-las, encomendá-las e por elas pagar bastante bem.
Assim como aprendiz fora um dia, Antão tinha sob si um outro, de nome José Maria. Nunca lhe perguntara a origem do duplo nome, embora soubesse tratar-se de um filho cristão já que cristãos eram todos ali declarados. E José Maria era quedo e a maior parte do tempo mudo, preocupando-se em acertar e cumprir ordens e ensinamentos. No mais, testava as bestas que o sogro fabricava, pois tinha mira e treino militar.
Antão tinha uma filha. Chamava-se Josefa. E a José Maria Josefa agradava. Sabe-se lá por que, mas Josefa não se agradava de José Maria. Talvez por preferir um noivo pedreiro como o avô, a quem muito estimava, ou por sonhar com algum fidalgo de olhos claros e tez pálida. Alguém cuja fina mão manejasse melhor os ademanes da corte que os ferros, os fogos e as águas.
Secretamente Josefa botava cartas. Havia aprendido o trato dos arcanos com uma cigana que passara pedindo água. A princípio, as botava para si mesma. Aos poucos, já treinada, botava em segredo para este ou aquele cliente. Mas aquilo que é secreto com o tempo torna-se público. E então veio da corte um fidalgo que pedia auxílio numa tarefa de extrema delicadeza: deveria ficar onde sempre esteve – amuado, mas certamente vivo, embora exposto à peste e aos furúnculos – ou tentar a sorte para além da Trapobana?
Sorte má que ao botar as cartas para Don Afonso – o tal fidalgo curioso – caiu-lhe um nove e, então, confundindo-o com o Ermitão que lhe significava o pai (quando, por certo, aqui o pai andaria pelos pés do Imperador) Josefa atrapalhou-se toda e leu a sorte pelo verso, misturada ao sonho de noivar bem para cima quando a verdade estava mais abaixo, confirmando peremptória que o melhor destino seria o de ficar na Corte a esperar momento melhor para partir aos sete mares.
E assim foi Don Afonso dizer de sua decisão a seu pai, Don Osório e, sem que avisado estivesse, servir de escárnio aos que o chamaram de cobarde e de fracassado, já que voltavam das Índias carregados de especiarias e madeiras-de-cheiro. E tanta raiva e ressentimento teve Don Afonso que denúncia fez de Josefa, por partes que teria com os judeus da Cabala, os mesmos judeus que mais tarde prenunciariam a glória de Zukerman e Chagall.
Enquanto tudo isso sucedia, está lá Antão a malhar durante o dia e a adoçar curvaturas pelas noites afora, entre os bang-bangs do martelo e do quase imperceptível voejar imaginado das setas. Mal sabia, decerto, dos augúrios de Josefa, tanto dos bons quanto dos maus ou maus por equivocados. E foi com inocente alegria que deu com a guarda que batia à sua porta, pretendendo fosse um magote de clientes, caindo em si finalmente quando a amada filha lhe levaram, manietada e à força, a ferros outros que não os de armeiro.
Daí para o veredito capital foi um átimo, mesmo diante das negativas veementes de Josefa, que permaneceu inarredável sob inevitáveis suplícios. A infiel deveria morrer de morte rápida, imediatamente, por qualquer meio que lhe eximisse as excusas – o que agradou bastante a Don Afonso. Ocorre que, ao pronunciar-se o dictum, a voz de alguém se alça, sugerindo que se faça passar a condenada pela ordália. E sabendo o magistrado que nada mais rápido havia que a morte morrida por seta disparada pela besta, contraria Don Afonso e aprova a prova, sendo brindado à volta por urras do populacho, mais interessado no espetáculo extra que na simples consumação da pena.
À noite, a troco de espertezas e algumas moedas, vai José Maria visitar Josefa e lhe diz que fora ele o autor da salvadora sugestão. Tudo aqui são trocas, já se viu, e Josefa lhe pergunta a troco de que fizera José Maria pender a execução. E ele lhe diz que deseja desposá-la, mesmo que para isso deva testar a mira contra a sua devoção. Espanta-se Josefa, mas aceita os termos de José Maria, mesmo duvidosa, não só da mira, mas da capacidade deste em ganhar a vida. “Não te preocupes”, diz ele, “para tudo há jeito”. E Josefa vai desdormir enquanto José Maria parte em busca da melhor besta que fabricara o armeiro Antão.
Deu-se a manhã, então, e o povo já se aglomerava na praça. Em pouco não restaria espaço nem para os petizes que tentavam meter-se entre as pernas dos crescidos. Rufam os tambores e de uma ponta do quadrilátero surge a processada. Atam-na ao poste, hirta, e propõem a venda que ela aceita. É preciso destinar um alvo para a prova e José Maria, que será o autor do disparo, equilibra sobre a cabeça de Josefa um pequeno cartão bem desenhado, ao que anui o magistrado.
Beijada a cruz levada aos lábios pelo paroquial, os passos são dados pelo guarda-mór e ali no chão, demarcado, o lugar do disparo. Lá se põe em posição convencional José Maria, que apruma o corpo, balança a terrível arma, demora na mira e dispara. Ouve-se então o swush da seta partindo os ares e um instantinho depois o thud quando atinge o alvo. Já ao primeiro ruído cai ao chão o armeiro Antão, fulminado o coração. Nem chegou a ver que José Maria conseguira trespassar o cartão, livrando Josefa sem mácula de seu destino anunciado. O magistrado, infeliz mas aliviado, e de qualquer forma indiferente à sorte do armeiro, manda ao guarda-mór buscar o alvo e, verificando que o cartão se encontra devidamente e ao meio perfurado, dá-se conta de que é a carta nove do baralho de Marselha.
19jul10
Andei lendo Saramago, com o qual me divirto sempre. Influenciado pelas convolutas do mestre, cometi esta história sem aspirar a nada mais que divertir um tico o desavisado leitor.
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