segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Um Conto

Thelma deixou-me esta manhã. Não agüentava mais, disse-me. Durante alguns anos tentamos equilibrar nossas energias. Quer dizer: a vocação de Thelma para os espaços abertos e o meu talento para a inércia.

Ao longo do tempo, fui construindo a meu redor, tijolinho a tijolinho, paredes sem-fim enquanto Thelma dançava, seguindo sua pulsação  e tentando não esbarrar nelas. Não posso reclamar agora – o trem apitou na curva e eu não me mexi.

Quando nos conhecemos, pensamos que éramos um para o outro. A idéia de complementaridade nos fascinou e achamos que nossa soma seria mais que dois mais dois; nossa sinergia potencializaria um poder maior que nossa simples adição. Não foi assim. A não ser na cama.

Na cama era assim: eu por baixo e ela por cima. Éramos tântricos naturais. Eu, que nunca havia pensado em dividir a tal “responsabilidade pela performance”, reescrevi meu livro pessoal de prazeres. E Thelma podia, nessas horas, dançar, pulsar, vibrar todos os sons, percutir todas as notas. Eu gostava de pensar que, juntos, éramos o sino que soava seu mantra por sobre as montanhas de Minas Gerais, indo morrer num horizonte lá longe...

Infelizmente, o alimento que nos vinha pela serpente da Kundalini não era suficiente para matar a fome de outras carências, nem cuidar de outros impulsos. Eu diria que enquanto eu empilhava livros, Thelma voava com as palavras. Simples assim. E profético.

Num dia modorrento de final de semana, em que eu deixava a barba crescer e usava um velho calção de banho, Thelma ajoelhou-se do meu lado, pegou minha mão e recitou-me o mais belo poema de despedida que eu já havia ouvido. E disse-me que foi num impulso, de repente. Tentei, diante do inevitável, abraçá-la, conduzi-la para o nosso mundo fechado dos lençóis. Ela respondeu-me, então, que não adiantaria. E, passando a mão levemente pelo meu rosto, disse que sentia que até nosso tapete mágico a estava engessando.

Percebi que era inútil. E deixei-a ir sem levantar um “ái”, ou derramar uma lágrima, para não contrangê-la. Meu amor por Thelma continuou exatamente o mesmo, até no jeito em que lhe abri a porta e a mantive aberta até que ela desaparecesse na esquina.

Agora estou aqui, relendo o jornal de domingo. Olho para as estantes à minha volta, levanto e vou abrir a porta. Quem sabe o passarinho não volta para a gaiola?

20SET10

Um comentário:

  1. E o passarinho voltou... Mas não está engaiolada, está à beira do sofá, dando bicadinhas de carinho no pescoço dele.
    Enquanto Thelma tenta achar espaços para dançar para ele, recebe sorrisos de afago e carinho. É hora dela por cima, e ele por baixo...

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