sexta-feira, 23 de julho de 2010

ELE

Escrevia muito pouco, somente o necessário. A professora insistia para desenvolver o texto. Mas para ele bastava dizer “menino” ou “menina”; não importava o nome ou a idade – isso ele sabia, e guardava.

Também falava muito pouco. Dava preferência às palavras “sim”e “não”. Raramente dizia um “talvez”.

Observava quieto, de um lado, o trabalho do encanador ou do eletricista. Trocava lâmpada queimada e fazia luz.

Também ficava olhando a cozinheira matar galinha e depois abrir, revelando os miúdos e limpando o milho ainda no papo.

Certa vez abriu um relógio que não andava, desmontou, remontou as peças, deu corda e fez funcionar. Ninguém viu.

Sorria quando entrava n’água, qualquer água. Quando batia os pés fazia uma espuma intensa, na piscina ou no mar.

E foi do mar que uma onda veio e o embolou. Virou de ponta-cabeça, foi sacudido de um lado para o outro, rolou até chegar na areia, quase desacordado. Chegou à casa e desatou a falar. Três dias falou sem parar. Até que caiu num sono profundo e sonhou.

Sonhou com verdes campos e verdes mares. Nos campos os pássaros e no mar os peixes. No ar, pássaros e peixes. O céu era azul de desenho animado; o sol, amarelo, não queimava. Podia ouvir tantos sons... Ouvia pausas, também, e longos silêncios. E tudo isso era a língua do mundo, com as folhas e flores cantando com a voz do vento. Chegou a ouvir o ruído da Terra girando em torno do eixo. Era a porta do quarto que abria. E ele acordou.

Desse dia em diante ele compreendeu que cada coisa andava com a outra e que o som, pra ser som, precisa do silêncio; assim como calor existe se faz frio. E entre o que falava e escrevia foi que tornou-se uma orquestra. E virou músico.

22jul10

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