sábado, 14 de agosto de 2010

Sincronicidades - "Lluvia de Piedra""


Granizo
Nicoló Brindisi levantou-se muito cedo. Às sete e meia da manhã de um dia de Inverno, ainda noite, rumava para a finca dirigindo o seu velho Ford Falcon e maldizia o governo da província por ser tão fraco diante das decisões vindas de Buenos Aires. Precisava muito de crédito público subsidiado, sem o qual não seria capaz de comprar a rede anti-granizo necessária para cobrir, ao menos, um terço do vinhedo. Havia tomado “lluvia de piedra” no ano anterior, perdido muitas plantas e muita uva. Este ano não resistiria se lhe sobrasse, mais uma vez, esse presente dos céus. Conhecia o intenso sofrimento dos vinhateiros de San Rafael, freqüentemente premiados com excesso de chuvas ou quedas intensas de granizo e se envergonhava de desejar que fossem eles os atingidos, e não ele.

Quando o pai de Nicoló, Dino Brindisi, chegou à Argentina, no final dos anos trinta, ficou maravilhado com a extensão do país, a quantidade e a qualidade de terra não cultivada, e decidiu abandonar o ofício de oleiro para dedicar-se ao cultivo de frutas. Primeiro, atraído pela quantidade de oriundos, rumou para a Patagônia Argentina, estabelecendo-se em Neuquén. Ali, chegou a cultivar pêssegos e maçãs. A concorrência, entretanto, era muito conservadora e não o animou a ficar. Mudou-se, então, para Mendoza, passando ao cultivo de uvas viníferas, primeiro como encarregado de um pequeno vinhedo no vale do Uco e, depois, como co-proprietário de um vinhedo de 35 hectares na mircro-região de Alto Agrelo. Em muito foi ajudado pela Signora Alda, nascida Ricchieri, -- a quem conhecera no navio que o trouxera da Itália – esposa e parceira que administrou, com muita sabedoria, as finanças do casal, além de dar a Dino dois filhos – Nicoló e Aldo.

Com o passar tempo, muito trabalho, e graças à habilidade financeira de Alda, Dino expandiu os negócios. Além de comprar terrenos vizinhos, todos com os devidos direitos de água, investiu na construção de uma bodega, equipando-a com o suficiente para a produção própria, iniciada com a assistência do compadre Jorge González, um experiente enólogo. Jorge, um bom amigo, já vinha dirigindo a produção de vinho de Dino em bodegas de terceiros e dera suporte a Dino na venda do vinho no atacado.

Muito antes de seu primeiro ano como produtor de vinho, Dino já conhecia as variedades em que deveria concentrar seus esforços. Ouvindo bem o que os compradores de uvas desejavam, observando com atenção os rótulos disponíveis nos restaurantes, lendo os jornais de Mendoza e, sobretudo, conversando muito com proprietários, bodegueiros e enólogos, Dino decidira dobrar o número de carreiras de Malbec, aumentar o número de carreiras de Cabernet Sauvignon, manter as carreiras de Merlot e plantar alguma coisa de Chardonnay. Esta última decisão por insistência de Alda, que o convenceu a ter uma variedade de primeira colheita para antecipar caixa. Com a vinificação de suas uvas em bodegas de terceiros, Dino preparou-se para ter uma produção de vinho que não iria depender de terceiros, em sua bodega.

A atividade do vinhateiro, entretanto, depende não só da sua capacidade de trabalho, da sua inteligência e espírito empreendedor, da disponibilidade de recursos e do mercado. Depende principalmente de variáveis não controláveis, como a meteorologia, e de algo que só o decurso do tempo provê, como a experiência de muitas e muitas colheitas e o envelhecimento das plantas. Assim, Dino teve que lidar com alguns revezes, tão mais sérios quanto fosse o despreparo para antecipa-los e mitiga-los. E, para, supera-los, novamente foi importante a família e a rede de relacionamentos de Dino.

Além de Alda, Dino podia contar com o ombro e a diligência de Nicoló, o primogênito. Nicoló desde pequenino interessara-se pelo que fazia o pai, acompanhando-o por toda a parte. Assim, muito cedo aprendeu os segredos do vinhedo, da lida com a terra, com as uvas, as pragas e a poda. Mais tarde, já rapaz, foi introduzido à elaboração de vinhos pelo padrinho Jorge González, tornando-se gerente da recém-inaugurada Bodega Brindisi aos dezenove anos. Junto com o pai comprava, vendia, lidava com o encarregado da finca e com os peões da época da colheita; com Jorge acompanhava todo o processo de preparação do vinhedo e de vinificação e guarda na bodega. Não tinha tempo para qualquer outra distração que não fosse o vinhedo e o vinho.

Já Aldo, o caçula dos Brindisi, era um fantasista distraído. Por certo acompanhava o pai aqui e ali, mas preferia a companhia da mãe, louvando-se em Matemática desde os tempos de colégio. Só que nada de prático saía das mãos de Aldo; preferia lidar com equações e problemas matemáticos, tendo passado meses enfurnado com a demonstração do Teorema de Fermat. Também gostava de olhar os céus e ler sobre fenômenos celestes. Sua única incursão nos negócios do pai deveu-se a um investimento equivocado, feito na compra de um canhão antigranizo destinado a bombardear as nuvens com catodos, interferindo na formação de cristais. Tal instrumento, de efeito bastante duvidoso, fora utilizado no passado, e depois abandonado, pela maioria dos proprietários, em prol do uso de redes anti-granizo estendidas sobre as videiras.

Embora tido como um fracasso na família, Aldo era um sucesso com as jovens de Mendoza, gastando bem a mesada que lhe destinava a mãe. Dançava, cantava e entretinha os amigos com suas teorias baseada numa tal Matemática do Improvável. Comunicativo, buscou e manteve contacto com os Brindisi do Brasil, que passou a conhecer quando revirava uma caixa de papelão onde se encontravam fotografias e cartas que o pai guardara. Com certa constância se correspondia com os filhos de Umberto Brindisi, que viviam em Ouro Branco, no sul do Brasil; e insistia que viessem visitar Mendoza, enquanto os de lá insistiam para que viesse conhecer o Brasil. Dino e Alda divertiam-se quando liam as cartas e viam as fotos dos Brindisi de Ouro Branco e de outros Brindisi que ficaram no Rio de Janeiro. Mas não tinham tempo ou recursos para mais nada que não fosse o negócio dos vinhos.

E enquanto Nicoló tomava decisões junto com os pais sobe os vinhos a elaborar, Aldo namorava as moças de Mendoza e observava os céus; enquanto Nicoló definiu que os Vinhos Brindisi tinham que firmar-se no mercado de varietais, deixando de lado os cortes, Aldo acumulou dados sobre o mapa celeste de Mendoza e emprenhou uma tal de Pilar, “La Rubia”, após uma tarde ouvindo Charly García no Parque San Martín. Era o início da década de 80 e o fim do ciclo militar trazia à Argentina um forte sentimento de modernização e renascimento. E foi dessa forma casual que Dino e Alda tornaram-se avós de Rafael Brindisi, um lourinho saudável que nasceu com 4 quilos e meio, medindo 55 centímetros.

Pilar e Aldo não se casaram, mas ela e o menino Rafael foram viver na companhia dos Brindisi. Pilar era muito jovem e ficava feliz por poder deixar Rafael sob a guarda da avó, enquanto saía com as amigas. Em contrapartida, Aldo abandonou a vida que levara e foi dedicando-se, cada vez mais, à Astronomia e ao radioamadorismo, sua mais recente paixão, passando a conversar diariamente com um primo de Ouro Branco, um tal de Tadeu Brindisi. Foi assim que soube da existência de uma outra família, que havia vindo da Itália no mesmo vapor – os Babinski. Józej Babinski, o polonês amigo de seu pai e de seus tios, teria testemunhado o chamado “Evento de Tunguska”, atribuindo-lhe um sentido que deixou Aldo no mínimo curioso.


A amizade entre Tadeu e Aldo tornou-se intensa, tanto mais que os dois partilhavam um interesse comum: os corpos celestes, suas órbitas e significados. Aldo, o mais bem preparado e de mais iniciativa, já havia entrado em contato com o Spacewatch, grupo de pesquisadores da Universidade do Arizona, que mantinha constante observação de meteoros, estrelas cadentes e cometas. Assim, em 1993, fora um dos primeiros a saber que um meteoro de grandes proporções poderia estar em rota de choque com a Terra, possivelmente ao Sul da América do Sul. Imediatamente repassou a notícia a Tadeu e iniciou um movimento em Mendoza, logo rebatido em Ouro Branco, para organizar o êxodo em direção a regiões de menor risco. O catastrofismo que se seguiu teve imediata repercussão mas, felizmente, dois equívocos importantes foram corrigidos: a órbita do meteoro foi corrigida, devendo ele passar bastante longe da Terra; e somente em 2.028! De qualquer maneira, o evento serviu para estreitar ainda mais a amizade entre os primos. E Aldo prometeu a si mesmo que visitaria Ouro Branco tão logo pudesse.

Mas não foi Aldo o primeiro dos irmãos a visitar o Brasil. Atento ao mercado internacional, Nicoló, que tomara a frente de toda a área comercial da Bodega Brindisi, resolveu viajar ao Brasil antes que o século XX chegasse a seu fecho. Havia provado vários vinhos brasileiros e chegado à conclusão pessoal que os argentinos eram muito superiores, em preço e qualidade. As regras do Mercosul favoreciam a exportação para o Brasil e Nicoló estava disposto a encontrar um distribuidor brasileiro para toda a linha dos Vinhos Brindisi. Primeiramente, esteve no Rio e São Paulo; em seguida visitou a concorrência no Vale dos Vinhedos e resolveu tirar o fim-de-semana em Ouro Branco, para conhecer a “família brasileira”.

Quando chegou a Ouro Branco, Nicoló ficou surpreso com o tamanho da família e a diversidade de seus familiares. O avô Umberto – que calhava de aniversariar naquela data – havia procriado abundantemente e todos os tios tiveram muitos filhos. Várias profissões e negócios estavam representados no grande jantar oferecido em homenagem a Umberto Brindisi e Nicoló sentiu-se profundamente emocionado com os discursos que lhe brindaram a visita. Todos estavam felizes e riram muito quando discutiram futebol. Gremistas e Colorados tiveram seus momentos de exaltação. Até um ramo dos Brindisi que havia ficado para trás, no Rio de Janeiro, esteve representado na discussão futebolística, mostrando o escudo do Botafogo espetado na lapela quando Nicoló exibiu a carteira de torcedor do Boca Juniors.

Ao final da noite, com quase todos já despedidos e idos, Nicoló foi agarrado pelo braço por um primo, que insistia em querer mostrar-lhe uma grande surpresa. E foi praticamente forçado a sair da casa e seguir o parente até uma pequena construção, erguida no grande quintal. Ao aproximar-se, notou a antena que se projetava para o céu no topo do telhado; e logo viu que se tratava de uma estação de rádio amador e que o primo era Tadeu Brindisi. Não quis estragar o a surpresa e encenou um “oh” quando Tadeu lhe mostrou a bancada, o rádio e o microfone. De lá, chamaram o Aldo e depois Dino e Alda. Nicoló não se recordava de ter falado tão longa e ternamente com o irmão.

Na manhã seguinte, quando tomava café antes de partir para Porto Alegre, onde tomaria o vôo de volta para Buenos Aires e dali para Mendoza, Nicoló falou pela primeira vez sobre os negócios da família na Argentina. Descreveu o vinhedo e a bodega, declinou números e planos, e elogiou a Cidade de Mendoza, garantindo que qualquer Brindisi seria muito bem-vindo à sua casa. Tinha lágrimas nos olhos quando despediu-se de todos e rumou para o carro, disfarçando o adeus de mão que deu à empregada Yolanda, com quem passara a noite.

14AGO10

Um comentário:

  1. "Tinha lágrimas nos olhos quando despediu-se de todos e rumou para o carro, disfarçando o adeus de mão que deu à empregada Yolanda, com quem passara a noite."

    Já tava com o coração na mão, pensando que Yolanda não seria citada... Não faça mais isso! auhauhauhauhau

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