terça-feira, 10 de agosto de 2010

Sincronicidades - Olaria


Babinski era oleiro em Cunha, São Paulo, cidade conhecida pela produção de cerâmicas de alta qualidade. A desconfiada população local achava estranho haver por ali um oleiro chamado Babinski, sem referência nem passado. No fim das contas, entretanto, tanto oleiros como ceramistas vivem de queimar o barro. E assim era.

Dona Olga, natural de Ouro Branco, Rio Grande do Sul, era professora da Escola Municipal Dr. Casemiro Rocha desde que se mudara para Cunha. Formara-se no reputado Instituto de Educação General Flores da Cunha e havia emigrado em razão do casamento com um jovem tenente da Polícia Militar. Enviuvou cedo e, tendo que complementar o orçamento da casa, dava aulas particulares de piano nas horas vagas.

Babinski tinha um único filho, de mãe desconhecida. Chamava-se Michel e estudava na Escola Municipal Dr. Casemiro Rocha, onde se tornou ardente admirador de Dona Olga. Passava as tardes sonhando e indagando sobre a professora. Assim, soube que a Dona Olga enviuvara e que estava a ministrar aulas particulares de piano.

Michel era um menino sensível e perspicaz, ajudava o pai na olaria e, enquanto suava, perguntava a Babinski por que o pai não era um ceramista, ao invés de cozinhar tijolos. Tanto insistiu que Babinski perguntou-lhe se queria aprender o ofício de ceramista. Respondeu que não; que preferia aprender música. Contou até que havia uma professora de piano que poderia dar-lhe aulas.

Babinski a princípio relutou; mas, levado a conhecer Dona Olga, assentiu e, mesmo com sacrifício, adiantou dois meses de aulas. Foi assim que o destino, aliado do ardil, colocou Michel e Olga lado a lado, sentados no banco de estudo.

Michel era aplicado e talentoso; e logo passou a merecer elogios que iam escritos em bilhetinhos dirigidos a Babinski. Babinski alegrava-se com os bilhetinhos e a sua aparência melhorava toda vez que ia ter com Dona Olga para tratar outro mês. Da aparência passou ao esmero com os tijolos, dando a alguns forma original, às vezes apondo-lhes relevos especiais, outras assinando-os com as iniciais do cliente da encomenda, outras ainda marcando-lhes o lado com o número 32. Estes últimos tijolos vendiam muito bem e puxavam as vendas dos demais.

Michel já era um estudante avançado, dominando alguns estilos e até improvisando melodias Seguia com as aulas de piano durante o mês de julho, quando Olga recebeu a visita de um casal de tios, acompanhados da prima Luiza, que vinha passar as férias em Cunha. Luiza era uma jovem de beleza exótica, resultado da mistura improvável dos sangues guarani e italiano. Cantava muito bem e logo ela e Michel ficaram amigos através da música. Os sonhos de ardor juvenil, entretanto, não visitavam os seios adolescentes de Luiza, mas permaneciam morando nas ancas de Olga.

Já ia o mês de setembro, Luiza voltara para Ouro Branco e Babinski seguia na corte da professora que dava aulas a Michel. Numa noite, após terminar um milheiro de tijolos, o pai confessa ao filho aquilo que já estava evidente: gosta da Professora Olga e pretende fazer-lhe uma proposta. O filho faz-se de surpreso e abraça o pai. À noite chora de culpa e tristeza.

Olga desenvolveu um gentil afeto por Babinski. Ainda uma jovem mulher, não se sentia preparada para a solidão. Em segredo nutria uma certa atração pelas mãos firmes, mas ternas, do oleiro. Assim que disse sim, sem pestanejar, principalmente ao saber que o oleiro, após tornar-se novedoso, prosperara. A ponto de poder comprar uma casinha nova não muito distante da Escola Municipal Dr. Casemiro Rocha. E em dezembro já moravam juntos, na Alameda Emilio Huble, Babinski, Olga, Michel e o piano.

Babinski e Olga viviam dias de alegria. Babinski cuidava de Olga com um desvelo exemplar: barbeava-se e tomava banho diariamente; perfumava-se; dizia palavras gentis; elogiava; aperfeiçoava o Português; recitava Olavo Bilac; e era profuso em carinhos e intróitos nas horas noturnas. Olga, feliz, retribuía. E sentia aquilo que sentem quem está feliz: o coração aberto, dono do mundo, e um grande poder para amar a tudo e a todos.

Em paralelo à felicidade do casal, preenchia casa a tristeza de Michel. O convívio com a madrasta em horas íntimas só fazia maltratar o sentimento que por ela tinha, em permanente conflito com a lealdade que deveria devotar ao pai. Sem poder concluir uma linha de ação que pusesse fim ao seu martírio, Michel resolve deixar que a vida o leve. E foi assim que, numa tarde modorrenta, sentados lado a lado no banco do suplício, Michel arriscou um beijo em Olga.

Olga, surpresa, resiste. Mas, tocada pela luxúria do momento, segue a torrente que lhe transborda o coração e acaba por devolver o beijo do enteado. Do piano ao quarto foram rapidamente. E na cama Michel solucionou, ao menos temporariamente, os mistérios da vida. Fizeram o amor vespertino que, na velhice, acomoda corações e, na juventude, prenuncia maremotos. As seções da tarde repetiram-se entre juras de amor e ondas de culpa. Nenhum sentimento por marido e pai era suficiente, entretanto, para interromper o desejo ou quebrar a cadeia de prazeres em que estavam presos Olga e Michel.

Os apaixonados, com o tempo, tornam-se descuidados. A paixão é tudo e exerce-la é mais importante que guarnece-la. Foi assim que Babinski surpreendeu sua mulher atracada com seu filho na cama do casal. A princípio o oleiro não soube o que fazer. Mas logo os sentimentos eclodiram e foi com furor que Babinski tomou de um cinto e começou a desferir golpes em um e outro dos infiéis. O temor reverencial tem enorme força, e Michel sucumbiu a ele: apressadamente, escafedeu-se pela janela e correu suspendendo as calças como podia, mesmo ouvindo os gritos de Olga e os pedidos de socorro.

Levou algum tempo para que alguém da vizinhança acudisse Olga. Quando o fez, encontrou a professora desacordada na cama, coberta de lanhos por todas as partes do corpo, principalmente no rosto. A um canto do quarto Babinski chorava de cócoras. Preso em flagrante, o oleiro está sendo processado com base na Lei Maria da Penha. Alvo do opróbrio da comunidade e da maldade da Imprensa, Babinski dá a palavra a ninguém. Ficará para sempre mudo; na mente, apenas uma parede de tijolos.

Envergonhado, mas contabilizando as vezes em que meteu-se entre as pernas da antiga professora de piano, Michel fugiu para a Capital, cuidando de deixar uma parede de tijolos protegendo a memória. Lá, depois de passar frio e fome, conseguiu ganhar algum tocando em bares e prostíbulos. Recentemente adquiriu certa estabilidade com uma banda de blues que se apresenta semanalmente num café sofisticado da Ministro Rocha Azevedo, esquina com Lorena.

Quanto a Cunha, logo após o ocorrido na Alameda Emilio Huble, um cataclismo abateu-se sobre a estância climática. Como resultado das fortes chuvas de janeiro, enxurradas destruíram pontes, estradas e lavouras. Centenas de pessoas ficaram desabrigadas e a Secretaria Municipal de Saúde computou duas dezenas de mortes em virtude de desmoronamentos na região. Uma coleção de vasos de cerâmica Raku foi encontrada entre os destroços de uma olaria situada no bairro de Barro Vermelho.

10ago10

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Notas:

A cidade de Cunha, cujo nome completo é Nossa Senhora da Conceição de Cunha, foi assim batizada em homenagem ao então Governador da Capitania de São Paulo, Francisco da Cunha e Menezes. Já o General Flores da Cunha nenhum parentesco tinha com Francisco da Cunha e Menezes; é um vulto militar gaúcho de grande importância, sendo lembrado pelo seu papel decisivo na Revolução de 30 e, depois, na Revolução Constitucionalista de 32, quando apoiou Getulio Vargas.

O Dr. Alfredo Casemiro Rocha diplomou-se em Medicina, com louvor, na Bahia, onde exerceu durante algum tempo, até mudar-se, pelos bons ares, para Avaré e, depois, para Cunha. Nesta cidade tornou-se político proeminente, elegendo-se deputado estadual e federal, senador pelo Estado de São Paulo, e prefeito de Cunha. Destacou-se, finalmente, pelos préstimos de cirurgião, que colocou à disposição dos constitucionalistas paulistas. Longe de onde descansa o Dr. Casemiro Rocha, repousa, no Mausoléu do Obelisco de São Paulo, ao lado do poeta Guilherme de Almeida, outro herói de Cunha – o lavrador Paulo Virgínio, torturado e depois fuzilado pelas tropas cariocas, por recusar-se a revelar a posição das tropas paulistas. Muitas famílias paulistas guardam, até hoje, o anel de prata com a inscrição “Dei ouro para o bem de São Paulo”, recebido em troca das doações feitas ao esforço revolucionário.

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