Picasso - Fase Azul |
Não pensava que a vida de músico seria tão difícil em São Paulo. Muitos estavam desempregados ou viviam na corda bamba dando aulas a trinta reais. Poucos conseguiam um emprego estável – ainda assim mal remunerado – e os concursos públicos eram um funil absurdo.
Durante as primeiras semanas abrigou-se num albergue. Até que conheceu um outro artista em dificuldades na roda da sopa. Conversaram sobre seus problemas e acabou que Michel, o pianista, passou a dividir uma kitchinette com Mathias, o pintor, em troca de alguns caraminguás.
Não havia cama para Michel, de modo que teve que dormir no chão, sobre alguns cobertores velhos. Era tudo muito deprimente. Não bastasse isso, Mathias era um chorão que vivia reclamando da via crucis para vender suas obras nas galerias da cidade – todas dominadas por mulheres belíssimas, mas frias e irredutíveis. E principalmente chorando pitangas quando falava de uma tal Mercedes, sua musa e grande benfeitora. Às vezes simplesmente lamentava a ausência dela; às vezes ia mais fundo em sua mágoa, atribuindo à musa uma certa maldade por havê-lo seduzido e depois abandonado. Em troca, Michel uma vez contou a Mathias sobre a paixão que devotara à madrasta e o final trágico que precedeu sua vinda de Cunha para São Paulo, quando o pai pegara os dois em meio a uma cópula vespertina.
Nas horas em que ouvia os solilóquios melancólicos de Mathias, ele recordava-se do episódio de Cunha. Via no escuro o rosto ensandecido do pai e o corpo machucado de Olga. Sentia vergonha por haver pulado a janela espavorido, e chorava baixinho de remorso e de saudade. Um dia Mathias mostrou-lhe o quadro que pintara de Mercedes, pedindo-lhe que nunca comentasse o assunto. Mercedes era a expressão de Afrodite, uma dessas plêiades que seduzem tanto humanos como deuses; e o quadro, em si, mostrava talento, talvez genialidade. Mas deste capolavoro Mathias não desejava abrir mão, preferindo guarda-la para si que perdê-lo para outro.
A rotina de miséria e choradeira teve fim quando Michel arranjou emprego numa cantina. Primeiro como garçon, depois como pianista. Mudou-se rapidamente para um apartamentinho na Mooca, mas comprometeu-se a não perder contato e, quando fosse necessário, ajudar o amigo.
O pianista era muito bom mesmo. Tocava com desenvoltura os sucessos do momento, assim como músicas de décadas e gostos distintos, sempre com os acordes e as levadas que conferiam legitimidade às suas interpretações. Os clientes passaram a freqüentar a cantina mais para ouvir Michel que para degustar massas e vinhos. Aumentaram-lhe a paga e pode mudar-se para um apartamento de quarto-e-sala na Moema. Lá, se enfurnava e fornicava com clientes cujo desejo ultrapassava ouvir os sons melodiosos que produzia no piano.
Um dia, uma das clientes que visitava com regularidade o apartamento da Moema, apresentou-lhe um amigo, e este amigo ofereceu a Michel o emprego de pianista “da casa” em um bar de blues e jazz. Michel agora havia recuperado o amor-próprio e, de quebra, ganhava bem para tocar o que mais gostava. Estava feliz por não mais ter que tocar "New York, New York" ou "alguma coisa do Roberto Carlos".
Um dia, mais à vontade para ter contato com o passado, Michel vai a um cyber café e abre seu e-mail encardido. Tem medo de ter perdido seu gmail, mas lá estavam, intocadas, dezenas de mensagens não-lidas. Foi lendo algumas e apagando direto a maioria. Entre as que resolveu ler estavam as de Luiza Brindisi, sobrinha de sua madrasta, que passara um mês em Cunha. Luiza relatava o que havia acontecido com sua tia e perguntava onde Michel se encontrava e como estava indo; em outras mensagens lamentava a falta de respostas; em outras, ainda, pedia conselhos sobre a carreira musical que recém-iniciara em Ouro Branco.
Colhido de surpresa pela dor que sentiu ao saber que Olga perdera uma das vistas e que o pai fora condenado e estava mudo e catatônico desde o dia da desgraça, Michel respondeu à Luiza somente depois de passadas algumas semanas. Quando o fez, nada falou sobre Olga, seu pai ou si mesmo. Limitou-se a responder às indagações sobre a profissão de músico e discorreu um pouco de sua experiência em São Paulo.
Luiza, então, percebendo a porta aberta, multiplicou a quantidade de e-mails. A cada resposta ou conselho, enviava outras tantas perguntas. Anexava arquivos MP3 e fotos em JPG, e refletia sobre novos planos que variavam entre montar uma nova banda a prosseguir sozinha, cantando onde tivesse oportunidade. Michel divertia-se muito com os e-mails da “prima”, cuja verve era sincera e profusa, a cara tão linda quanto se recordava e a voz muito boa. Enviava de volta outros arquivos MP3, com suas últimas gravações.
A troca de e-mails foi ficando mais intensa e os dois “primos” passaram a depender da correspondência para discutir seus problemas e achados. Contudo, Michel tinha medo de cansar Luiza e perde-la. Afinal, ela mesma confessara que se desinteressava rapidamente das pessoas.
A troca de e-mails foi ficando mais intensa e os dois “primos” passaram a depender da correspondência para discutir seus problemas e achados. Contudo, Michel tinha medo de cansar Luiza e perde-la. Afinal, ela mesma confessara que se desinteressava rapidamente das pessoas.
Assim, e antes que a água lhe chegasse aos joelhos, Michel atendeu a um último e-mail de Luiza, dando-lhe o endereço do bar em que tocava e o nome da pessoa a quem procurar. Não acreditava que Luiza tivesse a coragem de viajar para São Paulo, em busca da duvidosa e árdua carreira que ele tratara de desestimular. E daí em diante não mais respondeu aos e-mails que lhe chegavam de Ouro Branco.
17AGO10
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