quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Sincronicidades - Migrantes

Józef Babinski não se dá bem com o frio e, no entanto, vive ao norte de Bratsk. Poderia ter ficado em Irkutsk, quando o trem deixou-o na estação da Transiberiana. Mas não – sucumbiu à insistência de Ewa, sua mulher, a aceitou o emprego de guarda florestal naquele fim-de-mundo, ao norte de Bratsk.

Estamos no verão Siberiano e, no entanto, faz um frio dolorido. Józef acorda muito cedo, vai urinar na casinha e volta tiritando para o quarto. O aposento é pequeno: uma cama, uma cadeira, uma mesinha e, sobre ela, uma lamparina. Józef mete-se na cama e, logo que pode, entre as pernas de Ewa. Copulam sem palavras; ouvem apenas o ranger da madeira sob eles e o zunir do vento lá fora.

Às 7:15 da manhã do dia 30 de junho de 1908, Józef atinge o clímax em Ewa. Frédérik, primogênito do casal, acaba de ser concebido. Ouve-se, logo após, uma explosão extraordinária para os lados do Rio Tunguska. Józef e Ewa abraçam-se, transidos de medo. Desconhecem que um meteoro mergulhara na atmosfera e explodira a 8 km da superfície da Terra. A explosão gerara uma bola de fogo e a energia liberada derrubara florestas à sua volta. Durante muitos anos cientistas e místicos travam um embate em torno das explicações para o fenômeno que Józef Babinski via como uma profecia. Não por acaso Joseph Babinski, renomado neurologista francês de origem polonesa, também enxergava profecias ao descrever certa reação do hálux (dedão do pé) que terminou sendo conhecida como “Sinal de Babinski”.

A Revolução Russa eclode em 1917, primeiro de forma “branca”, depois de forma violenta. Józef é alistado num contingente do Exército Branco e, por pouco, escapa de ser feito prisioneiro pelos Vermelhos. Consegue reunir-se com Ewa e o pequeno Frédéric, escapando a família de volta para a Polônia e estabelecendo-se em Modlin, às margens do Rio Vístula. Durante os dias que ali passa, Józef constantemente relembra a explosão de Tunguska e lê Gurdjieff e o Pentateuco. Já Frédéric gosta de ouvir os Estudos de Chopin na casa da pianista Grazyna, amiga de sua mãe.

Em 1921 a Polônia infligiu uma derrota vergonhosa ao Exército Vermelho. Derrota que foi vingada quando da invasão Nazi-Soviética no início da Segunda Grande Guerra, em 1939. Ao tempo da revanche, Józef e sua família já não estavam mais em território polonês. Em 1929, atento ao “Sinal de Tunguska”, Józef emigrara com sua família para a Itália, precisamente para perto de Verona, onde os Invernos eram tranqüilos e os empregos melhores.

Em Modlin conhecera na Igreja um piemontês, que lhe ensinara um italiano rudimentar e lhe dera uma carta de recomendação para um certo Mario Brindisi, originário do Piemonte, mas radicado no Veneto, na cidade de Pazzon. O viúvo Mario Brindisi confeccionava tijolos e telhas especiais em sociedade com seus irmãos, Dino e Umberto, precisava de mão-de-obra e recebeu Józef Babinski com boa-vontade. Józef, em retribuição, monstrou-se um operário de valor, logo aprendeu o dialeto do Veneto e passou a auxiliar dos irmãos Brindisi. Junto Józef aprendia e trabalha o filho Frédéric, que tem mãos delicadas, mas bem dispostas. As mesmas mãos que, às escondidas, acariciavam os seios de Zaira, filha única de Mario.

Um dia Mario confessou a Józef que ele e os irmãos já estavam fartos de ouvir a arenga de Mussolini e dos “Camicia Nera” que, com atos de violência, perseguiam tanto os camponeses como os pequenos comerciantes da região. Contou-lhe, então, que os Brindisi pretendiam emigrar para o Brasil, onde um punhado de parentes se estabelecera e prosperara no Sul. E perguntou candidamente se Józef não gostaria de emigrar com eles. Józef argumentou com as dificuldades que havia tido ao emigrar tantas vezes; falou ao amigo sobre sua família que já estava acostumando-se a Pazzon; disse-lhe que já tinha o suficiente para dar uma entrada na olaria. E respondeu-lhe que, por ora, não.

Mario era um sujeito perspicaz e já percebera a queda que a filha Zaira tinha por Frédéric. Armou, pois, um plano para convencer o amigo a partir para o Brasil. Como quem nada quer, anunciou a Zaira que partiriam para o Novo Mundo em breve e que havia convidado Józef para irem juntos com Frédéric e Ewa. Mas que o polonês se havia negado a ir. Zaira, então, cheia de apreensão e tristeza, foi ter com Frédéric e o fez prometer que influenciaria pai e mãe a embarcarem juntos na aventura brasileira.

O estratagema deu certo e em agosto de 1933 partiam num vapor, com destino ao Rio de Janeiro, Mario Brindisi e sua filha Zaira, junto com os irmãos Dino e Umberto, ambos solteiros, Józef Babinski, sua esposa Ewa e o filho Frédéric. Chegados ao destino, os irmãos Brindisi se separaram: Umberto resolveu ficar na Capital da República e arranjar emprego numa oficina mecânica; Dino seguiu viagem para Buenos Aires, encantado por uma italianinha que conhecera no navio e tinha família na Argentina; e Mario, com a ajuda de contatos já apalavrados, rumou para Mogi-Guaçu, Estado de São Paulo, junto com os Babinski, onde se estabeleceram com uma pequena olaria.

Como antecipado, Frédéric e Zaira casaram-se alguns meses depois da chegada ao Brasil. E dois anos depois nascia Giuseppe Babinski. A esta altura Vovó Ewa estava muito contente pois, além de ganhar um netinho, a quem cuidava com desvelo, descobrira parentes do marido em Carlos Barbosa, Rio Grande do Sul. Mario Brindisi, por sua vez, seguia correspondendo-se com os irmãos Dino e Umberto, que logo tiveram filhos cariocas e portenhos, torcedores do Botafogo e do Boca Juniors.

Após o nascimento de Giuseppe, as famílias de Józef Babinski e Mario Brindisi permaneceram do mesmo tamanho. Só aumentariam após o casamento de Giuseppe com Dona Angélica Fagundes, da Paróquia de Santa Edwiges. A esta altura, estamos no ano de 1965 e ainda estão todos vivos, Józef (que ainda fala de Tunguska, cutucando a mulher e piscando o olho) e Mario (que segue vociferando contra os fascistas de Verona), ambos com mais de oitenta anos, Ewa com um pouco menos, e Fréderic e Zaira chegando aos sessenta. Mas, quando Giuseppe e Angélica têm o par de gêmeos, Eva e José Babinski, em 1972, vivos estão somente Ewa (que lamenta as proles tão reduzidas), Frédéric e Zaira. E a olaria.

Angélica Babinski, de nascimento Fagundes, aprendeu rapidamente os segredos da cozinha italiana e polonesa, criando pratos em que uma intercalava-se com a outra. Ouvira dizer que a Hungria era a encruzilhada de várias culturas – o que resultava, por sua vez, numa culinária fantástica. Costumava dizer que sua cozinha era a sua Hungria, e cozinhava diariamente para todos os Brindisi e Babinski. Ewa, já sofrendo de Alzheimer, ria muito de tudo aquilo e perguntava as mesmas perguntas, inclusive sobre um certo primo András, o Húngaro, com quem se correspondera por algum tempo.

Deu-se então que Eva caiu doente. Foi definhando, definhando. Os médicos vieram e foram, passaram muitos remédios e, por fim, diagnosticaram uma leucemia intratável. Com Eva foram-se um a um dos parentes; primeiro Ewa, já velhinha, depois Frédéric e Zaira, num acidente de carro, e finalmente faleceu Angélica, de puro desgosto. Quando foi-se, não cozinhava mais; nem para o filho José que, a esta altura, cuidava sozinho da olaria.

Sentindo-se muito triste e só, José Babinski se amiga com uma tal de Bebete, que engravida, dá-lhe um filho e some na estrada, sem nunca mais dar notícias. José tem um profundo amor pela criança, mas não quer mais viver ali e, em 1992 vende a olaria e muda-se, com o pequenino Michel Babinski, para Cunha, onde se estabelece como oleiro.

Longe dali, uma numerosa prole de Brindisis popula a pequena cidade de Ouro Branco, Rio Grande do Sul. São estancieiros, comerciantes, profissionais liberais e até uma menina que canta muito bem, chamada Luiza. Sabem que pelo Estado de São Paulo e pelo Rio de Janeiro têm parentes. Mas estão ainda distantes para tê-los como parte da família e de suas histórias...


11AGO10

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