sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Ah, essa vã Filosofia...

Acabo de ler o número 20 da revista “Filosofia”. Atraiu-me a matéria de capa sobre Baudrillard (“Você é o que você consome”). Que decepção! Pela leitura da revista, acabei também sabendo que a disciplina “Filosofia” agora faz parte da grade do Ensino Médio.

Os textos da revista são descosturados e repletos de chavões do tipo “torna-se imprescindível”, “urge notar”, “ademais” e pencas de “outrossins”, intercalando citações gratuitas, usadas para dar legitimidade aos textos (não aos autores – porque estes padecem da falta de qualquer imaginação). Que desgraça!

Fico imaginando as hordas de “filósofos” (graduados em Filosofia) girando em torno do novo mercado de trabalho. E me apeno dos alunos que terão que deglutir páginas e páginas de textos indesejados, que serão obrigados a decorar por via de palavras-chave.

Recordo-me, então, da leitura dos primeiros livros de Direito que tive que enfrentar. Escritos de forma arcaica e convolutada – como se o blá-blá-blá empoeirado lhes conferisse o necessário gráu de saber –, os tais textos fizeram a miséria de minhas tardes de estudante. Recordo-me, também, do momento em que passei a ler os juristas de outras plagas e do momento em que textos mais arejados passaram a fazer parte da doutrina jurídica brasileira. Que alívio!

Voltando ao tema. Segundo me atualizo, a justificativa para a inserção da Filosofia na grade do Ensino Médio é a de “ensinar os jovens a pensar”. O mesmo constructo que procurava justificar a detestável análise sintática e ungia os concursos onde os infelizes candidatos eram chamados a analisar textos de Camões. Pura balela! Os jovens pensarão melhor na medida em que escreverem mais; de preferência à mão.

Me explico: há um tempo de pausa entre o pensar e o escrever à mão que permite a reflexão (a possibilidade de uma borracha virtual?). É no desenvolvimento de uma linguagem manuscrita que aprendemos o ritmo e a sutiliza das pausas (pontuação) tão necessários para inserir o autor e o leitor no mantra da palavra dita. Vale dizer: capturar o ouvinte e abrir a avenida para o diálogo. No fim das contas, bem escrever requer bem pensar. E isto se exercita pela prática – tanto da leitura de, e reflexão sobre, textos interessantes, como pela escrita de originais que proponham uma reflexão sobre o que pensa o autor (não exclusivamente o autor do texto que é debatido).

Volto à revista e leio um modesto texto sobre Erasmo, com “tags” ao lado, para facilitar a apreensão (ou, em bom Português, “decoreba”), de autoria de um Professor Universitário de Filosofia. E fecho o volume quando, ao final do artigo, segue-se o anúncio de uma coleção de livros perfeitamente intitulada “Ninguém Merece”...

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Gauchito Gil

Ora, ora... não é que há Exus sendo cultuados na Argentina!? Andando pelo interior, comecei a observar, à beira da estrada, pequenos oratórios vermelhos, embandeirados. Divergiam de tamanho, mas nunca de forma; às vezes formavam um conjunto de estruturas, com muitas bandeirolas; às vezes eram apenas casinholas solitárias, que mais pareciam abrigos de pássaros dispostos à margem da auto-via.

Perguntando, descobri que tratava-se de devoção a um personagem chamado Gauchito Gil. Uma espécie de Robin Hood que havia vivido na última metade do século XIX, sendo morto pelos "celestes" depois de ter sido apanhado libertando um grupo de "colorados". Após sua morte, Gil passou a fazer milagres, quando invocado.

Uno de los miles de santuarios del Gauchito Gil en Argentina

Na verdade, reza a lenda que o primeiro de seus milagres ocorreu antes mesmo de sua morte, em benefício de um filho enfermo de seu verdugo. Daí por diante, passou a ser considerado protetor não só dos pobres, mas também dos doentes. E hoje multiplicam-se os altares, como este aí acima, que revelam a alma devota e criativa do povo do interior.

Sendo eu um macumbeiro declarado, e antropólogo amador, fiquei imensamente feliz de constatar formas religiosas autóctones na Argentina que lembram as nossas raízes africanas - embora nascidas de vertentes dela independentes. Ao mesmo tempo em que assinalam nossas diferenças, os oratórios do Gauchito Gil me confirmam, uma vez mais, a valia da "cross cultural research" como um instrumento que demonstra a unicidade da nossa humanidade.

Laroyê, Gauchito Gil!

Música e Competição

Tenho um imenso prazer no convívio musical. Faço música improvisada e isto tem a ver com diálogo com, não com diálogo contra (como é a arenga dos tribunais). De modo que sempre me surpreenderam os concursos, verdadeiras justas onde músicos são posicionados uns contra os outros.

Também me surpreendem, de igual modo, as eleições anuais das revistas especializadas (Down Beat, Guitar Player, Modern Drummer, etc.), buscando apontar vencedores em várias modalidades e classes. Sei que estas promos são importantes no marketing pessoal dos músicos e naquele das gravadoras. O que me espanta mais, entretanto, é a transformação dos músicos em heróis das suas respectivas legiões de fãs. A final, o tipo de música de que estamos falando requer espírito aberto e atenção para a diversidade - este o bônus que premia a criatividade e a constante busca de novas formas de expressão.

E, no entanto, quando leio os posts no YOUTUBE, vejo que a grande maioria se digladia em torno de "quem é o melhor", ao invés de observar o talento do grupo ou a "conversa" que rola entre os músicos.

É por isto que saúdo atitudes de grandes como Joe Lovano e David Liebman - dois saxofonistas da pesadíssima - quando se reúnem semplesmente para falar da grande amizade pelo companheiro que partiu - no caso, Michael Brecker. Vejam no vídeo abaixo...


Aproveitem, também, para ver os outros vídeos onde tocam os três juntos.

Julio e Cosima

Julio Ambrósio era um cara de sorte. Vivia como queria num quarto de hospedaria na Gonçalves Ledo que anunciava “Quartos mobiliados para solteiros”. Observava incansavelmente o movimento da Praça Tiradentes – de dia o comércio decadente, as portas fechadas e a promessa de revitalização da área; de noite, as prostitutas que usavam o Hotel Paris por 15-30 minutos a trepada. Achava graça em tudo e conversava com todos – do bicheiro à vendedora de colchões Ortobom da esquina da Avenida Passos. Às vezes uma profissional mais bonitinha conseguia atraí-lo para um passeio na Lapa e uma noite de amor num quartinho de parede meia-água. E era o máximo!

Poucos sabiam que era filho do Dr. Ambrósio, ginecologista de renome, dono de uma elegante clínica no Grajaú e devoto de Nossa Senhora de Fátima. Ignoravam também que Julio havia cursado a Faculdade de Medicina e Cirurgia até o quarto ano, quando decidira que não tinha pendor para salvar vidas, costurar músculos e soldar ossos. Preferia ser gauche na vida. Fôra guarda-vidas, operador do bondinho do Pão de Açúcar, vendedor de aparelhos para surdez, e tantas outras ocupações quantas havia para ter. Em qualquer delas achava interesse e espaço. Agora era auxiliar de escrevente num cartório de títulos e documentos – o que lhe permitia conhecer os altos e baixos da vida cidadã, atendendo a advogados, contadores e mensageiros.

Sua diversão preferida, além dos passeios vagamundos e as conversas fiadas, eram as matinés a preços módicos e a leitura que ia com facilidade do Eça ao “Surfista Prateado”, passando por Mark Twain e pelos grandes russos. No pequeno criado mudo jazia um livro marcado – “Medicina Vibracional”, de um tal de doutor Gerber. Antes de dormir, ria pensando no que o pai diria se soubesse que andava vagando por curas esotéricas. Era freqüentador da Biblioteca Nacional. Sentia-se bem no meio de tantos volumes, que imaginava empoeirados e hibernais, à espera da leitura salvadora _ “O que é um livro fechado? Nada!”, perguntava e respondia. E foi numa tarde em que buscava uma re-edição de Julio Verne que conheceu por acaso a senhorita Cosima Szabó.

Cosima era uma solteira amarga, filha de um casal de húngaros que imigrara para o Rio em busca da ajuda de um primo distante. Vivera sob a constante reclamação da mãe e o destempero do pai. Nascera em Maria da Graça e, graças ao trabalho diuturno do pai numa oficina de automóveis importados, agora morava num apartamentinho na Serzedelo Correia, em Copacabana.

Desde muito cedo Cosima teve as habilidades domésticas testadas pela mãe. Debalde. Não conseguia costurar, sequer pregar um botão. Era feia e desajeitada. Incapaz de preparar um goulash decente, errava na escolha da carne e na medida, para mais ou para menos, de creme azedo. De páprica, nem falar – era um tempero que portava-se muito mal em suas mãos!

Sem ter vocação definida, cursara a Escola Normal e tornara-se professora da Escola Municipal Bombeiro Geraldo Dias, na Tijuca, onde era odiada pelo corpo discente. De A a Z. Atacada por um pivete da Favela Salgueiro, foi aposentada prematuramente. E assim passava seus dias, de cá para lá, pois gostava de caminhar e sabia manter o portentoso par de pernas – única dádiva de Deus, nutrida à perfeição pela calistênica ensinada aos esbarrões pelo pai.

Pois bem... a primeira coisa que Julio Ambrósio notou em Cosima Szabó foi o seu magnífico par de pernas. Em seguida percebeu o contraste entre as ditas pernas e a fealdade do restante. Mas já estava, então, cativado. Talvez não tanto pelas pernas em si, mas pela curiosidade da aparente contradição. De modo que, assim que a viu aproximar-se, ergueu-se e ofereceu sua cadeira, mesmo havendo tantas outras cadeiras vagas.

Cosima agradeceu e de cara fechada dirigiu-se à cadeira em frente. Usava uma minisaia jeans que, ao sentar-se, revelou ainda mais as suas pernas. Pouco ligou para o olhar elogioso de Julio e terminou o espetáculo de forma brusca – puxando a cadeira para frente e escondendo seu único dote sob o tampo da vetusta mesa. Assim, cortada ao meio, a única parte boa escondida, Cosima era a mulher feia e mal-humorada, à qual os pais, os colegas e os alunos estavam acostumados, alternadamente, a desprezar e a mal-querer.

Julio, entretanto, via mais longe. Observava o invisível das situações. E percebeu o extraordinário manancial de fel que poderia usar como tempero em sua vida. Na realidade, até então não deparara com algo tão profundo como o ressentimento de que se nutria Cosima. Era uma chance extraordinária de trazer mais conteúdo para sua vida! Assim que não esmoreceu: venceu o silêncio obrigatório do local e começou a parolar com Cosima, a esmo e sem direção.

Seja por que razão fosse, Cosima abriu uma janela a Julio. E depois a porta. Saíram dali e foram ao Amarelinho, onde sentaram-se e esperaram. Julio pediu um chopp e Cosima disse “não, obrigada”. Decidiram ir ao cinema, ali mesmo na Cinelândia. Compraram pipoca e assistiram a um filme que tinha o bonequinho batendo palmas na porta. Era uma escolha sensata. O filme, entretanto, era morno. Melhor assim, pois Julio arriscou a mão num dos joelhos de Cosima. Preparada para o suave bote, a mulher feia deixou que a mão do moleque pousasse por um segundo e, depois, devolveu-a. E ficaram assim, tateando-se no escuro – as investidas de Julio e os desguios de Cosima. Na saída, Julio ofereceu-se para levá-la a Copacabana. Cosima declinou e despediram-se. Entretanto, marcaram um próximo encontro no próximo sábado. Por ali mesmo.

E assim foram se encontrando, sábado sim, sábado não. Deixa estar que, além de feia, Cosima era gato escaldado. Fora traída por dois noivos e não permitia muitas entradas. Julio, por outro lado, era dotado de inesgotável paciência – ouvia as histórias tristes de Cosima over & over again, onde misturavam-se a má relação com os pais, o desterro odioso na escola pública e a decepção nos namoros mal-encerrados. Na verdade, começava a temperar sua vida com o Fernet Branca que lhe oferecia Cosima. E, de encontro em encontro, Cosima passou a ter confiança em Julio. E acabou convidando-o para visitá-la na casa de seus pais.

O senhor Szabó mal podia acreditar que sua filha tivesse sido capaz de arranjar outro namorado. Mas era fato: lá estava, diante da porta, arrumado e penteado, o Julio. Para ele, a pequena sala, Cosima, e o senhor e a senhora Szabó eram um presépio encantado. Para os demais, Julio Ambrosio era uma incógnita. Mas quem iria ligar? Conversaram um pouco, tomaram uma cerveja e logo a mesa estava posta e, pronto para servir, o goulash de Cosima, feito precisamente para a ocasião... O senhor e a senhora Szabó disseram palavrões em húngaro à primeira garfada; mas, para Julio, o acepipe estava para lá de bom. Tanto, que Cosima não pode disfarçar a emoção de ver o namorado repetir o prato.

Da primeira visita ao noivado foi um pulo; ao casamento, outro. Para o Dr. Ambrósio e sua senhora toda a história galopante do romance era inexplicável. Mas estavam conformados: a final, agora havia esperança de que Julio encerrasse sua fase errante e iniciasse um período de responsabilidade. Com prazer foram à cerimônia e trocaram palavras protocolares com os consogros. E assim partiram, Julio e Cosima, para a grande aventura da vida em comum.

Terminada a lua-de-mel em São Lourenço, o casalzinho adentrou o quarto-sala-dependências alugado em Botafogo e começou o experimento. Cosima, apesar de vagamente feliz, manteve a caturra e as belas pernas – exatamente o que desejava Julio. Toma banho à noite, e lambuza-se de óleo Sève (aroma de canela) antes de meter-se na cama. Às vezes, exigindo camisinha e gozando rápido, cede passo aos arroubos denodados de Julio.

Cosima arranjou uma empregada peso-pena que cuida de ensinar-lhe alguma coisa de cozinha. Passou a dar voltas no Botafogo Praia Shopping, onde gasta parte da aposentadoria em coisinhas para o lar e nas promoções das lojas que vão fechar. Julio segue no emprego no cartório de títulos e documentos. Às vezes vagueia pelo Centro da Cidade, conversa com os velhos amigos e pisca os olhos para as iniciantes. Nas noites de lua cheia, espera Cosima dormir e desliza até o quarto da empregada. Fode-a repetidas vezes, gozando fora em todas elas.

Esta historinha -- que era prá ser curtinha, mas acabou longa por puro prazer de escrevê-la -- é dedicada a meu irmão Z., que conheceu o Centro da Cidade do Rio de Janeiro pelas mãos do mesmo pai e apresentou-me ao contista Thomas Bernhard.

24nov09

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Duas na Rede

sou ciumento do teu par de coxas/da tua cara limpa e boa/do teu abraço que não me tem/da tua figura que se olha no espelho/sem ser percebida///sou ciumento do que não tenho/ciumento das tardes mornas/da fatia de bolo de fubá com café/que não me ofereces/e sou ciumento sim/ardorosamente ciumento/da tua cama que não visito/do teu seio/que não beijo/do teu perfume/que não sinto/do teu gozo/que não colho... (para Quika=21set06)

eu guardo por instantes/o instante átimo/em que tu passas/e me animas///eu guardo/para sempre/a não-existência/dos instantes/em que me tocas... (para May Lefay =21set06)

Padaria dos Diabos!

Na quase-esquina de minha casa há uma padaria, cujo dono é um português (ou um grupo de portugueses). A padaria tal é um sucesso; vende mais caro que o super-mercado do outro lado da rua mas está sempre cheia. São os hábitos das gentes...

Pois bem... O pão da padaria é de qualidade sofrível (até entendo: razões de tabelamento do pãozinho impedem que a massa seja mais rica) -- com isso a vizinhança já se acostumou há anos.

Mas o padeiro faz bolos, também. Broas, bolinhos, biscoitos. E o que me surpreende é que as obras e artes do padeiro são detestáveis. Os bolinhos são secos e inermes; as brevidades duras e sem-gosto; os doces grosseiros e indigestos. E aí me pergunto: o que leva o padeiro a ser padeiro se não faz do trigo, da água, do açúcar e do sal seu esmero? Que diacho de mundo é esse que nos dá padeiros sem brio (só de olho na padaria)? Que faço eu -- que acredito nos padeiros do Velho Mundo – mudo-me ou me lanço das escadas?

29jan01

A Chave da Minha Libido

Um dia não agüentei mais. Liguei pra Darlene e disse que precisava encontrar com ela urgente.

Na época eu tinha um sala-dois quartos vago num condomínio na Barra, vista pro mar. Foi lá que marquei nosso encontro.

Darlene chegou às onze. Deu uma espiada rápida na sala e ficou aguardando de pé, a bolsa barata bege pendurada no braço esquerdo.

Houve um tempo em que eu aguardava a faxineira nu. Em poucos minutos estávamos trepando. Não hoje. Mandei que deixasse a bolsa num canto e descesse comigo.

Fomos até a praia, passeando pelo condomínio. Eu queria encher os olhos dela.

Num quiosque tomamos uma água de coco e depois voltamos ao apartamento.

Na sala, uma mesinha que eu havia deixado de sobra e um par de cadeiras. Pedi que sentasse. Em seguida dei-lhe umas duas folhas de papel em branco, uma caneta e pedi que fosse escrevendo o que eu ditava.

- Aquele apartamento mobiliado e equipado para morar de graça.

- Despesas de supermercado a combinar.

- Luz, gás, telefone, condomínio e IPTU por minha conta.

- Plano de saúde.

- Atendimento dentário e médico [ela precisava dar uma enchida naqueles peitos].

- Academia de ginástica.

- Vestuário a combinar.

- Transporte a combinar.

E um fixo por mês, livre, da ordem de umas quinhentas pratas.

Em troca Darlene seria minha escrava. Eu queria recuperar a chave da minha libido e precisava dela à minha disposição. Ficaria de joelhos na minha frente, me daria o cu, cortaria minhas unhas, me daria banho, arranjaria mulher pra mim, chuparia meu pau à hora que eu quisesse e engoliria a porra toda. O que fosse. Acho que até embolei no meio a caçula da Darlene – um fim-de-semana com ela ou algo assim.

Mais uma condição: homem lá dentro, só eu. Darlene podia foder quem quisesse, desde que me atendesse quando eu mandasse. Mas outro homem só lá na puta que o pariu onde ela morava antes. Aqui não.

Se esteve surpresa no início, ao chegar ao fim da lista Darlene estava calma. Quando terminei, dobrou a folha de papel e pediu um tempo. Claro, Darlene, eu disse, mas me procura ainda essa semana.

Quando estava saindo, dei-lhe uma nota de cinqüenta e um tapa na bunda. Darlene voltou-se para fazer jus à gorjeta. Mas eu a parei e me despedi ali mesmo.

Dois dias depois a recepcionista me avisou “está aqui a senhora Darlene”. Mandei-a subir.

Ao chegar, Darlene beijou-me as mãos como fazia quando estava agradecida e eu pedi que se sentasse, na mesma mesinha, à minha frente. “E então?”, perguntei. Darlene segurou a bolsa bege com as duas mãos no colo e me respondeu “sabe, Dr. Carlos, eu já estou meio passada, tenho netos que eu cuido, não dá pra cortar minha vida assim como o senhor quer... mas eu gosto muito de você e... bem... se o senhor quiser, um dia por semana, eu passo com o senhor o tempo que o senhor quiser, faço o que o senhor quiser, por quatrocentos reais por mês”.

Eu aceitei.

17abr07

Civilidade

Em seu livro, “Modernidade Líquida”(Jorge Zahar Editor, Rio, 2001, pp. 111 e 112) Zygmunt Bauman discute a questão da “civilidade” e cita Richard Sennett (“The Fall of Public Man”):

“[a civilidade é] a atividade que protege as pessoas umas das outras, permitindo, contudo, que possam estar juntas. Usar uma máscara é a essência da civilidade. As máscaras permitem a sociabilidade pura, distante das circuntâncias do poder, do mal-estar e dos sentimentos privados das pessoas que as usam. A civilidade tem como objetivo proteger os outros de serem sobrecarregados com nosso peso.”

Bauman, a seguir, comenta:

“Segue-se esse objetivo, é claro, esperando reciprocidade. Proteger os outros contra a indevida sobrecarga, refreando-se de interagir com eles, só faz sentido se se espera generosidade semelhante dos outros. A civilidade, como a linguagem, não pode ser “privada”. Antes de se tornar arte individualmente aprendida e privadamente praticada, a civilidade deve ser uma característica da situação social. É o entorno humano que deve ser “civil”, a fim de que seus habitantes possam aprender as difíceis habilidades da civilidade.”

O tema, entretanto, que parece simples na teoria, é movediço na prática. É possível que se use a “máscara da civilidade” para sobrecarregar os outros com o peso de nossa própria individualidade (para usar a expressão de Sennett). Exatamente para isso. Aliás, é essa a atitude comum entre os esnobes ou entre aqueles que desejam marcar uma determinada posição, aqueles que apreciam ser vistos como uma “elite” entre a “ralé”. Essa falsa civilidade é, assim, o próprio anverso daquilo que se deseja por civil. É uma máscara excludente (“pesada”, portanto) que nega o outro, que fecha a porta da comunicação entre os indivíduos, que impõe a presença “privada”(usando a terminologia de Bauman) sobre a existência “pública” da vida social.

De outra parte – e aí falo por mim – é importante diferenciar a atitude esnobe da falsa civilidade da atitude irônica – que convida à polêmica e que é provocação. Esta é outra máscara que, embora utilize as tintas do esnobismo, dele faz pouco, já que seu objetivo específico é servir de verruma contra outras máscaras que, de comum acordo, tratam de excluir do mundo “privado” de seus usuários os demais indivíduos que buscam o convívio “civil”.

As Carlos Perique – 18fev04

A Doença

O que é a doença? Acho que a doença vive entre dois mundos: o mundo da existência dela, em si; e o mundo da percepção dela. Esta é uma questão parecida com a que submete a existência de um objeto à sua percepção pelo olho do observador.

Posso dizer que estou bem, gozando de boa saúde, se não percebo a doença – quer ela exista em mim, ou não. Assim, posso passar meus dias despreocupadamente, mesmo que tenha uma doença, desde que não a perceba. Essa afirmação é válida para qualquer tipo de doença, tanto a enfermidade física como uma disfunção afetiva.

Concluo que nada há de “anormal” (portanto “doente”) em levar vida feliz, mesmo estando doente, na santa ignorância de meu mal.

De modo inverso, se me percebo doente, esteja ou não afetado por uma doença, estou doente. E estarei infeliz e preocupado comigo e, muito provavelmente, amedrontado, sem contar com o mal-estar que estarei sentindo.

A partir do momento que me percebo doente nasce uma outra questão: curar-me; a ação para curar-me. Entre o momento da percepção e o da ação existe um momento, menos ou mais longo, em que a mobilização para a cura me coloca em estado de tensão. Este hiato é ditado por razões objetivas mas também por estados subjetivos, como o receio de enfrentar a verdade e/o receio do processo de cura, o nojo de reconhecer o estigma, etc.

Penso que a doença é uma questão objetiva de sintomatologia e tratamento. Mas acho que a mais profunda origem da infelicidade está entre o momento de percepção e de ação. Arrisco que esta infelicidade é de intensidade semelhante à daquela causada pelo desengano ou pela perda irreparável. E é por isso que rezo menos pela cura e mais pelos aflitos. Na verdade, não peço que meu Pai Oxalá cure ninguém, mas que abrace docemente, que leve paz ao coração de todos os aflitos, inclusive eu mesmo.

19fev01

Dos Delitos e das Penas (desenvolvendo Beccaria)

Realmente esse é um tema fascinante. E sobre ele já escreveram filósofos, cientistas políticos, sociólogos, psicólogos e o que mais... O interessante é ver que não importa a filiação desta ou aquela opinião: todas podem estar certas ou erradas, conforme a ótica sob a qual sejam examinadas. É possível, portanto, que uma teoria tenha um grande apelo ético, mas nenhum efeito prático; assim como é possível que um teoria de alto teor técnico, cientificamente comprovado, nos engasgue a moral e os bons costumes.

Em maior ou menor grau, mesmo diante das diferenças de opinião, as teorias sobre “crime e castigo” vêem na sanção uma função instrumental para a “paz social”, para a ordem, para a manutenção de uma estrutura de poder que, montada sobre um sistema comum de crenças e valores, permita que os indivíduos e a coletividade usufruam de tranqüilidade, de segurança para desempenhar com fluidez suas tarefas quotidianas.

Esta teorização sobre a função da pena tem legitimação no desenvolvimento do indivíduo na sociedade onde irá viver. Desde crianças, durante o processo chamado de “socialização”, convivemos com este aspecto da vida em comum: limites da ação chamada de anti-social. Desde crianças somos castigados exemplarmente quando fazemos algo que amua os nossos maiores ou, por ensinamento, algo que é considerado contra as leis do convívio. Talvez a palavra “feio”, aplicada à criança ou ao que ela fez (ou deixou de fazer) seja a sanção mais comum na educação de um indivíduo em crescimento. A punição, como forma de indicação do “certo” e do “errado” e, também, como desencorajador de futuras ações “erradas”, é algo com que aprendemos a viver, é um instrumento que permite diminuir o custo das cotoveladas mediante algo que se chama “aprendizagem”.

De uma coisa todos estão certos, entretanto, todos comungam: (a) para ser efetiva, a sanção deve ser sabida com antecipação; e (b) uma vez disparado o gatilho (a ação sancionada), ela deve ser aplicada. Isto quer dizer que castigo sem aviso ou o castigo não aplicado têm o mesmo desmerecimento: não levam a qualquer efeito instrumental da “paz social”.

continua algum dia]

30nov05

O Medo - 1a Parte

O medo é uma das principais razões de nosso acanhamento. Ele é um grande inibidor de ações e, portanto, de êxito.

Três fatores concorrem para a persistência do medo: (a) a percepção de um risco de fracasso; (b) experiência anterior de fracasso em situação semelhante; e (c) a crença de que a inação dará o mesmo resultado que a ação.

O medo é reação. Em seu momento inicial de manifestação ele não é elaborado pela via racional. Tudo se passa numa confrontação bastante simples: a situação dada, a pre-disposição existente e a ação inibidora do medo.

O medo é um inibidor do êxito, mas também é um acautelador de fracassos. Assim como a dor, o medo sinaliza a existência de uma situação de perigo e funciona para evitar ações que levem fatalmente ao desastre. Neste sentido, o medo nos preserva, nos protege.

Já vemos que há um medo bom e um medo ruim. Isto quer dizer que simplesmente eliminar o medo ou estimulá-lo – sem distinguir situações e a função do medo como reação a elas – não nos garante o sucesso do bom viver. A chave estaria na utilização inteligente do medo. E o que seria essa utilização inteligente?

Deixando de lado as situações em que o medo se manifesta como reação imediata a um quadro de fracasso iminente (a reação de “saudável” que teríamos, por exemplo, se alguém tentasse nos empurrar para o abismo), vemos que há um número enorme de confrontos diários em que podemos transformar nosso medo em discernimento e, daí, em ação adequada ao sucesso.

É útil imaginar as situações como um conjunto de forças que se antagonizam, se anulam, se sobrepõem, se equilibram, etc. Usando esse modelo, podemos identificar vetores inibidores e estimuladores da ação. O medo seria um vetor inibidor enquanto que a ambição e o prazer seriam vetores estimuladores da ação.

02jun03

O Mar do Leblon

Desde que me lembro, o mar do Leblon sempre sofreu de um mal causado por nós, cariocas: a nata de sujeira que diariamente vem lá de fora e vai chegando até secar na areia. Essa cicatriz móvel de mau-cheiro maltrata a fauna marinha e a nós, banhistas. De quebra, faz-nos repugnar essa grande beleza que é a massa d’água salgada e em movimento!

Recentemente tenho interpretado esse estado de coisas sob outra perspectiva. Sento-me na areia e fecho os olhos; e ouço o choro de Yemanjá... Nem esse Orixá tão poderoso consegue processar diariamente as toneladas de detritos que nós, por tanto tempo e tão consistentemente, enviamos ao mar. Minha Mãe está triste porque, sendo a divindade do Amor, por excelência, tem em volta de si, em si mesma, a marca do desamor. E aí penso que sem o Homem não há Orixá e que essa relação é muito perversa, pois a vingança divina seria necessariamente auto-destrutiva. Compreender essa verdade me leva a entender a utilidade do Amor e a perceber como necessitamos dele, tanto espírito como matéria.

Esta semana estive na Praia de Boa viagem, Recife. Outro mar, outra areia. Da janela do quarto fiquei observando o oceano e registrando o movimento das marés. De manhã maré vazante, os banhistas passeando na areia e tomando "banho de assento" nas piscinas formadas pela barreira de recifes; de tarde maré cheia e os banhistas nadando ou recolhendo-se ao calçadão de areia. Minha Mãe de outras roupas, minha mãe tão bela sempre!

Na hora de partir para o aeroporto dei o último vistaço para o mar. E vi, surpreso, a "nata de sujeira" chegando à areia -- detritos, sacos de plástico, pedaços de madeira, debris... E pensei, entristecido como eram semelhantes essa praia e a minha...

09fev01

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

O Homem que Assobiava

Hoje de manhã, caminhando para o escritório, irritado pelo trânsito que me atrasara por mais de quarenta minutos, passei por um homem que assobiava. Usava terno e gravata, devia ter uns cinquenta para sessenta anos, carregava uma pasta com descuido. E assobiava.

O inusitado levou-me a um momento de reflexão. O que fizera aquele sujeito tão feliz? Uma boa trepada com a patroa pela manhã? O filho mais velho passou no vestibular? Ganhara na loteca? Talvez nada disso. Talvez a razão daquela simples alegria fosse esperteza; ou melhor, sabedoria. E aí lembrei-me de uma história que um amigo de um amigo de uma amiga me contara um dia – a do homem que sabia pausar. Ei-la.

O homem que sabia pausar era esse tipo de indivíduo que consegue se abstrair de uma situação qualquer e apreciar o singelo fato de estar vivo. E assim era seu modo de estar no mundo. Contagiava a todos com sua modesta maneira de assobiar ou fechar os olhos e respirar.

Certo dia, usando do rico dinheirinho que economizara, o homem que assobiava tratou de encontrar uma prostituta famosa, que atendia pelo sugestivo nome de Madame Dê. Bateu à porta do apartamento em Copacabana e, apresentando-se, passou para dentro do pequeno living. Usava terno, de modo que, após educadamente pedir licença, afrouxou o nó da gravata e tirou o paletó, dobrando-o e colocando-o num inconspícuo espaldar.

Sentou-se ao sofá na companhia da profissional e ali ficou, mudo e quedo, mas muito à vontade. Madame Dê esperou alguma ação por algum tempo; na falta dela, iniciou o processo de abordagem, tratando de alisar as posses do cliente enquanto sorria o sorriso da Madona. O homem a olhava, apreciando-lhe os movimentos e as falas decoradas. Mas não mostrava nem o início de uma ereção.

Madame, então, tentou outros truques. Despiu-se lentamente, como fazem as meninas da Prado Júnior, e dançou, fez caras e bocas, disse palavras rudes e palavras doces. Em seguida levantou o homem pela gravata, fez com que tocasse seus seios e explorasse a famosa área entre suas pernas. E... nada. Só faltava mais uma iniciativa: perguntou se queria apenas conversar, pois ainda tinha algum tempo. "Não", disse ele, "quero apenas estar".

Cansada, Madame sentou-se e puxou o homem para seu lado. Entendeu, finalmente, que deveria deixar que ele fizesse o que quisesse. E ele o fez: quando ficaram em silêncio ele tirou lentamente sua roupa, deixando para último lugar o par de meias soquete. Feito isto, voltou a sentar-se ao lado de Madame, cruzou as pernas como um hindu e masturbou-se um pouco, até ganhar um certo tamanho.

Dali por diante as coisas se processaram vagarosamente e, quando Madame deu-se conta, estava sentada em cima do homem, cavalgando-o como há muito não fazia – isto é, com prazer. De vez em quando, o homem pedia que pausasse e observasse alguma coisa: um som diferente lá fora, a luz do crepúsculo que entornava-se pela sala, ou a densidade de um súbito silêncio. Foram se entretendo assim pela tarde afora, mudando de posição quando sentiam alguma dormência, caminhando e pausando um sobre o outro.

Quando chegou a noite, Madame deu-se conta da hora tardia e dos clientes perdidos. Aflita, apressando o ritmo, quis a todo custo fazer com que o homem gozasse. Mexia as cadeiras, gemia, guinchava, implorava. Mas ele apenas a olhava, algumas vezes compreensivo, outras atônito. Até que, por fim, por pura compaixão, o homem gozou um gozo manso de águas tranqüilas.

Ao sair, deu-lhe um beijo e agradeceu. Deu seu telefone a Madame, num gesto que poderia ser inútil, não fosse ele quem era. Menos de uma semana depois Madame lhe falava. Pedia que viesse vê-la. Estava só e queria sua companhia. O homem foi. E repetiu a dose muitas vezes. Madame passou a sentir falta, passou a perguntar-lhe sobre a família, o emprego, os amigos e possíveis amigas outras . Em troca, esclareceu que o apelido “Dê” vinha de seu prenome, “Desirée”; e confessou que era apaixonada pelo Julio Iglesias. O homem nada falava; respondia com um sorriso e a fazia gozar mais e mais vezes com seu jeito despretensioso, mas eficaz.

Os encontros foram, então, repetindo-se mais amiúde. O homem tornara-se, pouco a pouco, o homem em casa (não “da” casa, como explicitava). E quanto mais Madame era feliz, mais clientela perdia. A final, que cliente iria gostar de ver um homem pedir licença para entrar no quarto, pegar as chinelas debaixo da cama, e sair educadamente dizendo que ia comprar pão?

Madame começou a exigir mais pelo menos que estava a ganhar. Pedia segredos, confissões, detalhes íntimos. Mas o homem não tinha quase nada a oferecer. Era órfão, tendo sido criado pelas Irmãs Carmelitas; estudara, formara-se em Ciências Contábeis e agora prestava serviços a algumas empresas do Rio; gostava de banho de mar, de tomar sorvete e de passear aos domingos; e tinha paixão por shows de mágica, tendo adquirido um formidável número de kits, manuais e DVDs – “faço desaparecer qualquer coisa, inclusive números”, afirmava alegremente.

De fato, o homem gostava muito de divertir Madame com truques de desaparecimento. Fazia-a passar pela angústia de procurá-lo pela casa toda e depois, vitorioso, tocava a campainha e aparecia na porta – do lado de fora! Tantas e tantas vezes recorreu à brincadeira que Madame não ficou aflita quando o homem desapareceu por todo um dia. E mais outro. Aí, ao final do terceiro dia, Madame começou a afligir-se. Aflição que tornou-se desespero ao chegar ao final de semana sem saber do homem.

Foi então que descobriram o corpo na área do térreo, boiando na caixa d’água do prédio. Durante o enterro no Caju, sem parentes ou amigos a acompanhar, o coveiro notou o ar de tranqüilidade na face do homem. Os jornais noticiaram o caso e a polícia investigou várias hipóteses. Dizem que o zelador do prédio chegou a ser indiciado por ocultação de cadáver – o que tornou-se uma piada por algum tempo no boteco da esquina.

Quanto à Madame Dê, mudou-se para um quartinho no Catete. Agora faz michê a qualquer preço e, quando gozam sobre, por entre, dentro ou fora dela, mostra o mesmo sorriso indiferente ou, às vezes, assobia “El día que me quieras”...

12nov09