Hoje de manhã, caminhando para o escritório, irritado pelo trânsito que me atrasara por mais de quarenta minutos, passei por um homem que assobiava. Usava terno e gravata, devia ter uns cinquenta para sessenta anos, carregava uma pasta com descuido. E assobiava.
O inusitado levou-me a um momento de reflexão. O que fizera aquele sujeito tão feliz? Uma boa trepada com a patroa pela manhã? O filho mais velho passou no vestibular? Ganhara na loteca? Talvez nada disso. Talvez a razão daquela simples alegria fosse esperteza; ou melhor, sabedoria. E aí lembrei-me de uma história que um amigo de um amigo de uma amiga me contara um dia – a do homem que sabia pausar. Ei-la.
O homem que sabia pausar era esse tipo de indivíduo que consegue se abstrair de uma situação qualquer e apreciar o singelo fato de estar vivo. E assim era seu modo de estar no mundo. Contagiava a todos com sua modesta maneira de assobiar ou fechar os olhos e respirar.
Certo dia, usando do rico dinheirinho que economizara, o homem que assobiava tratou de encontrar uma prostituta famosa, que atendia pelo sugestivo nome de Madame Dê. Bateu à porta do apartamento em Copacabana e, apresentando-se, passou para dentro do pequeno living. Usava terno, de modo que, após educadamente pedir licença, afrouxou o nó da gravata e tirou o paletó, dobrando-o e colocando-o num inconspícuo espaldar.
Sentou-se ao sofá na companhia da profissional e ali ficou, mudo e quedo, mas muito à vontade. Madame Dê esperou alguma ação por algum tempo; na falta dela, iniciou o processo de abordagem, tratando de alisar as posses do cliente enquanto sorria o sorriso da Madona. O homem a olhava, apreciando-lhe os movimentos e as falas decoradas. Mas não mostrava nem o início de uma ereção.
Madame, então, tentou outros truques. Despiu-se lentamente, como fazem as meninas da Prado Júnior, e dançou, fez caras e bocas, disse palavras rudes e palavras doces. Em seguida levantou o homem pela gravata, fez com que tocasse seus seios e explorasse a famosa área entre suas pernas. E... nada. Só faltava mais uma iniciativa: perguntou se queria apenas conversar, pois ainda tinha algum tempo. "Não", disse ele, "quero apenas estar".
Cansada, Madame sentou-se e puxou o homem para seu lado. Entendeu, finalmente, que deveria deixar que ele fizesse o que quisesse. E ele o fez: quando ficaram em silêncio ele tirou lentamente sua roupa, deixando para último lugar o par de meias soquete. Feito isto, voltou a sentar-se ao lado de Madame, cruzou as pernas como um hindu e masturbou-se um pouco, até ganhar um certo tamanho.
Dali por diante as coisas se processaram vagarosamente e, quando Madame deu-se conta, estava sentada em cima do homem, cavalgando-o como há muito não fazia – isto é, com prazer. De vez em quando, o homem pedia que pausasse e observasse alguma coisa: um som diferente lá fora, a luz do crepúsculo que entornava-se pela sala, ou a densidade de um súbito silêncio. Foram se entretendo assim pela tarde afora, mudando de posição quando sentiam alguma dormência, caminhando e pausando um sobre o outro.
Quando chegou a noite, Madame deu-se conta da hora tardia e dos clientes perdidos. Aflita, apressando o ritmo, quis a todo custo fazer com que o homem gozasse. Mexia as cadeiras, gemia, guinchava, implorava. Mas ele apenas a olhava, algumas vezes compreensivo, outras atônito. Até que, por fim, por pura compaixão, o homem gozou um gozo manso de águas tranqüilas.
Ao sair, deu-lhe um beijo e agradeceu. Deu seu telefone a Madame, num gesto que poderia ser inútil, não fosse ele quem era. Menos de uma semana depois Madame lhe falava. Pedia que viesse vê-la. Estava só e queria sua companhia. O homem foi. E repetiu a dose muitas vezes. Madame passou a sentir falta, passou a perguntar-lhe sobre a família, o emprego, os amigos e possíveis amigas outras . Em troca, esclareceu que o apelido “Dê” vinha de seu prenome, “Desirée”; e confessou que era apaixonada pelo Julio Iglesias. O homem nada falava; respondia com um sorriso e a fazia gozar mais e mais vezes com seu jeito despretensioso, mas eficaz.
Os encontros foram, então, repetindo-se mais amiúde. O homem tornara-se, pouco a pouco, o homem em casa (não “da” casa, como explicitava). E quanto mais Madame era feliz, mais clientela perdia. A final, que cliente iria gostar de ver um homem pedir licença para entrar no quarto, pegar as chinelas debaixo da cama, e sair educadamente dizendo que ia comprar pão?
De fato, o homem gostava muito de divertir Madame com truques de desaparecimento. Fazia-a passar pela angústia de procurá-lo pela casa toda e depois, vitorioso, tocava a campainha e aparecia na porta – do lado de fora! Tantas e tantas vezes recorreu à brincadeira que Madame não ficou aflita quando o homem desapareceu por todo um dia. E mais outro. Aí, ao final do terceiro dia, Madame começou a afligir-se. Aflição que tornou-se desespero ao chegar ao final de semana sem saber do homem.
Foi então que descobriram o corpo na área do térreo, boiando na caixa d’água do prédio. Durante o enterro no Caju, sem parentes ou amigos a acompanhar, o coveiro notou o ar de tranqüilidade na face do homem. Os jornais noticiaram o caso e a polícia investigou várias hipóteses. Dizem que o zelador do prédio chegou a ser indiciado por ocultação de cadáver – o que tornou-se uma piada por algum tempo no boteco da esquina.
Quanto à Madame Dê, mudou-se para um quartinho no Catete. Agora faz michê a qualquer preço e, quando gozam sobre, por entre, dentro ou fora dela, mostra o mesmo sorriso indiferente ou, às vezes, assobia “El día que me quieras”...
12nov09
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