terça-feira, 24 de novembro de 2009

Julio e Cosima

Julio Ambrósio era um cara de sorte. Vivia como queria num quarto de hospedaria na Gonçalves Ledo que anunciava “Quartos mobiliados para solteiros”. Observava incansavelmente o movimento da Praça Tiradentes – de dia o comércio decadente, as portas fechadas e a promessa de revitalização da área; de noite, as prostitutas que usavam o Hotel Paris por 15-30 minutos a trepada. Achava graça em tudo e conversava com todos – do bicheiro à vendedora de colchões Ortobom da esquina da Avenida Passos. Às vezes uma profissional mais bonitinha conseguia atraí-lo para um passeio na Lapa e uma noite de amor num quartinho de parede meia-água. E era o máximo!

Poucos sabiam que era filho do Dr. Ambrósio, ginecologista de renome, dono de uma elegante clínica no Grajaú e devoto de Nossa Senhora de Fátima. Ignoravam também que Julio havia cursado a Faculdade de Medicina e Cirurgia até o quarto ano, quando decidira que não tinha pendor para salvar vidas, costurar músculos e soldar ossos. Preferia ser gauche na vida. Fôra guarda-vidas, operador do bondinho do Pão de Açúcar, vendedor de aparelhos para surdez, e tantas outras ocupações quantas havia para ter. Em qualquer delas achava interesse e espaço. Agora era auxiliar de escrevente num cartório de títulos e documentos – o que lhe permitia conhecer os altos e baixos da vida cidadã, atendendo a advogados, contadores e mensageiros.

Sua diversão preferida, além dos passeios vagamundos e as conversas fiadas, eram as matinés a preços módicos e a leitura que ia com facilidade do Eça ao “Surfista Prateado”, passando por Mark Twain e pelos grandes russos. No pequeno criado mudo jazia um livro marcado – “Medicina Vibracional”, de um tal de doutor Gerber. Antes de dormir, ria pensando no que o pai diria se soubesse que andava vagando por curas esotéricas. Era freqüentador da Biblioteca Nacional. Sentia-se bem no meio de tantos volumes, que imaginava empoeirados e hibernais, à espera da leitura salvadora _ “O que é um livro fechado? Nada!”, perguntava e respondia. E foi numa tarde em que buscava uma re-edição de Julio Verne que conheceu por acaso a senhorita Cosima Szabó.

Cosima era uma solteira amarga, filha de um casal de húngaros que imigrara para o Rio em busca da ajuda de um primo distante. Vivera sob a constante reclamação da mãe e o destempero do pai. Nascera em Maria da Graça e, graças ao trabalho diuturno do pai numa oficina de automóveis importados, agora morava num apartamentinho na Serzedelo Correia, em Copacabana.

Desde muito cedo Cosima teve as habilidades domésticas testadas pela mãe. Debalde. Não conseguia costurar, sequer pregar um botão. Era feia e desajeitada. Incapaz de preparar um goulash decente, errava na escolha da carne e na medida, para mais ou para menos, de creme azedo. De páprica, nem falar – era um tempero que portava-se muito mal em suas mãos!

Sem ter vocação definida, cursara a Escola Normal e tornara-se professora da Escola Municipal Bombeiro Geraldo Dias, na Tijuca, onde era odiada pelo corpo discente. De A a Z. Atacada por um pivete da Favela Salgueiro, foi aposentada prematuramente. E assim passava seus dias, de cá para lá, pois gostava de caminhar e sabia manter o portentoso par de pernas – única dádiva de Deus, nutrida à perfeição pela calistênica ensinada aos esbarrões pelo pai.

Pois bem... a primeira coisa que Julio Ambrósio notou em Cosima Szabó foi o seu magnífico par de pernas. Em seguida percebeu o contraste entre as ditas pernas e a fealdade do restante. Mas já estava, então, cativado. Talvez não tanto pelas pernas em si, mas pela curiosidade da aparente contradição. De modo que, assim que a viu aproximar-se, ergueu-se e ofereceu sua cadeira, mesmo havendo tantas outras cadeiras vagas.

Cosima agradeceu e de cara fechada dirigiu-se à cadeira em frente. Usava uma minisaia jeans que, ao sentar-se, revelou ainda mais as suas pernas. Pouco ligou para o olhar elogioso de Julio e terminou o espetáculo de forma brusca – puxando a cadeira para frente e escondendo seu único dote sob o tampo da vetusta mesa. Assim, cortada ao meio, a única parte boa escondida, Cosima era a mulher feia e mal-humorada, à qual os pais, os colegas e os alunos estavam acostumados, alternadamente, a desprezar e a mal-querer.

Julio, entretanto, via mais longe. Observava o invisível das situações. E percebeu o extraordinário manancial de fel que poderia usar como tempero em sua vida. Na realidade, até então não deparara com algo tão profundo como o ressentimento de que se nutria Cosima. Era uma chance extraordinária de trazer mais conteúdo para sua vida! Assim que não esmoreceu: venceu o silêncio obrigatório do local e começou a parolar com Cosima, a esmo e sem direção.

Seja por que razão fosse, Cosima abriu uma janela a Julio. E depois a porta. Saíram dali e foram ao Amarelinho, onde sentaram-se e esperaram. Julio pediu um chopp e Cosima disse “não, obrigada”. Decidiram ir ao cinema, ali mesmo na Cinelândia. Compraram pipoca e assistiram a um filme que tinha o bonequinho batendo palmas na porta. Era uma escolha sensata. O filme, entretanto, era morno. Melhor assim, pois Julio arriscou a mão num dos joelhos de Cosima. Preparada para o suave bote, a mulher feia deixou que a mão do moleque pousasse por um segundo e, depois, devolveu-a. E ficaram assim, tateando-se no escuro – as investidas de Julio e os desguios de Cosima. Na saída, Julio ofereceu-se para levá-la a Copacabana. Cosima declinou e despediram-se. Entretanto, marcaram um próximo encontro no próximo sábado. Por ali mesmo.

E assim foram se encontrando, sábado sim, sábado não. Deixa estar que, além de feia, Cosima era gato escaldado. Fora traída por dois noivos e não permitia muitas entradas. Julio, por outro lado, era dotado de inesgotável paciência – ouvia as histórias tristes de Cosima over & over again, onde misturavam-se a má relação com os pais, o desterro odioso na escola pública e a decepção nos namoros mal-encerrados. Na verdade, começava a temperar sua vida com o Fernet Branca que lhe oferecia Cosima. E, de encontro em encontro, Cosima passou a ter confiança em Julio. E acabou convidando-o para visitá-la na casa de seus pais.

O senhor Szabó mal podia acreditar que sua filha tivesse sido capaz de arranjar outro namorado. Mas era fato: lá estava, diante da porta, arrumado e penteado, o Julio. Para ele, a pequena sala, Cosima, e o senhor e a senhora Szabó eram um presépio encantado. Para os demais, Julio Ambrosio era uma incógnita. Mas quem iria ligar? Conversaram um pouco, tomaram uma cerveja e logo a mesa estava posta e, pronto para servir, o goulash de Cosima, feito precisamente para a ocasião... O senhor e a senhora Szabó disseram palavrões em húngaro à primeira garfada; mas, para Julio, o acepipe estava para lá de bom. Tanto, que Cosima não pode disfarçar a emoção de ver o namorado repetir o prato.

Da primeira visita ao noivado foi um pulo; ao casamento, outro. Para o Dr. Ambrósio e sua senhora toda a história galopante do romance era inexplicável. Mas estavam conformados: a final, agora havia esperança de que Julio encerrasse sua fase errante e iniciasse um período de responsabilidade. Com prazer foram à cerimônia e trocaram palavras protocolares com os consogros. E assim partiram, Julio e Cosima, para a grande aventura da vida em comum.

Terminada a lua-de-mel em São Lourenço, o casalzinho adentrou o quarto-sala-dependências alugado em Botafogo e começou o experimento. Cosima, apesar de vagamente feliz, manteve a caturra e as belas pernas – exatamente o que desejava Julio. Toma banho à noite, e lambuza-se de óleo Sève (aroma de canela) antes de meter-se na cama. Às vezes, exigindo camisinha e gozando rápido, cede passo aos arroubos denodados de Julio.

Cosima arranjou uma empregada peso-pena que cuida de ensinar-lhe alguma coisa de cozinha. Passou a dar voltas no Botafogo Praia Shopping, onde gasta parte da aposentadoria em coisinhas para o lar e nas promoções das lojas que vão fechar. Julio segue no emprego no cartório de títulos e documentos. Às vezes vagueia pelo Centro da Cidade, conversa com os velhos amigos e pisca os olhos para as iniciantes. Nas noites de lua cheia, espera Cosima dormir e desliza até o quarto da empregada. Fode-a repetidas vezes, gozando fora em todas elas.

Esta historinha -- que era prá ser curtinha, mas acabou longa por puro prazer de escrevê-la -- é dedicada a meu irmão Z., que conheceu o Centro da Cidade do Rio de Janeiro pelas mãos do mesmo pai e apresentou-me ao contista Thomas Bernhard.

24nov09

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