quinta-feira, 3 de junho de 2010

Codinomes

Hoje de manhã assisti no YouTube ao clip de uma entrevista de rua do Paul McCartney, feita na tarde do dia em que John Lennon foi assassinado. Paul estava sem a máscara que o consagrou como artista solo e mostrou ser um peixe frio e ressentido. Talvez tenha passado pela sua cabeça o desejo de ter sido ele a ser alvejado na porta do Edifício Dakota – o que me levou a pensar na relação entre Cazuza e Frejat e a penitenciar-me por ser injusto com Frejat.

De verdade, gostava muito do Cazuza e fui ao último show dele. No Canecão dividi a mesa com duas mulheres desconhecidas, cuja emoção era tão visível como a minha. Tentei trocar algumas palavras, mas me respondiam com monossílabos. Ficou claro que estavam ansiosas para ver o espetáculo começar; e não em iniciar uma conversa boba e sem destino comigo.

Ouvi “Preciso Dizer que Te Amo” com o coração nas mãos. Anos depois, quando vi o filme “O Tempo Não Para”, a cena com Leandra Leal cantando esta canção remeteu-me para um mundo meu que não existe mais. Um mundo de amor arrebatado mas doce, sem nexo ou estrada, cujo compromisso era com ele mesmo, sem temer pela saúde, sem correr do dia seguinte. Queria partilhar esta sensação com as mulheres que dividiam a mesa, mas elas seguiam mesmerizadas pelas figuras no palco, plantadas em suas próprias experiências...

Num determinado momento aparece Simone, ainda bonita, e Cazuza e ela fazem um duo cantando “Codinome Beija-Flor”. A platéia parecia não ligar para o fato de ver repetida tantas vezes esta canção. No rádio, nos aparelhos de som, na cabeça, no ônibus. Talvez porque a repetição vire um mantra ou se torne a identidade de uma tribo. Desta vez, ao olhar para o lado, vi que uma das mulheres me olhava fixamente e, ao terminar o número, perguntei seu nome. Ela fez que não com a cabeça, como se dançássemos e eu tivesse errado o passo. Calei-me e continuamos a ver o show.

Cazuza cantou uma, e outra, e mais outra das canções que aprendi tanto a gostar – “Todo Amor que Houver Nesta Vida” (...matando a sede na saliva/ser teu pão, ser tua comida/todo amor que houver nesta vida/e algum trocado pra dar garantia...), “Vida Louca Vida” (“Vida louca/vida breve/já que eu não posso te levar/quero que você me leve”...), “O Tempo Não Para” e tantas outras, em seqüência.

Quando o show terminou e os aplausos foram morrendo, notei que a mulher que me olhara antes voltava a fixar os olhos nos meus. E convidei-a e à sua amiga para tomarmos algo. Disseram-me que moravam na Zona Sul e assim rumamos para um bar em Botafogo -- o Aurora, na Capitão Salomão. Lá sentamos e, antes de trocar palavras, cariocamente pedi um chopp e elas também.

Abertos os trabalhos, começamos a trocar idéias sobre o Cazuza e o show. Isto levou a que abríssemos nossos comentários sobre as maldades da vida e logo estávamos confessando sortes e azares. Soube, assim, que a desconhecida mais receptiva havia terminado um longo namoro e estava triste e só. Senti empatia pelo que me dizia, já que passava pela mesma situação, e sem mais comecei a citar uns versos de minha autoria. Algo assim como “...a cada poça d’água/que evitas/no teu caminhar tonto mas firme/vejo a lua distante/assim como distante estou de mim...”. Aplaudiram-me e me senti um tonto porque aqueles eram versos chorões, sem compostura. De toda maneira, havíamos encontrado a mesma base e foi com naturalidade que aceitaram o convite para ir à minha casa.

Já no táxi senti uma coxa morna contra a minha, numa intimidade que só a noite proporciona. Não me recordo qual das duas estava imprensada contra meu corpo, mas era bom, e deitamos as cabeças juntas até chegarmos ao meu endereço.

Subimos as escadas e, quando chegamos ao meu andar da casa, percebi que estavam as duas encantadas. É que o ambiente era mesmo mágico – não por força de alguma iluminação técnica ou de decoração estudada; mas porque aquela casa tinha sido construída com matéria de sonhos, devagarzinho, cada canto contando uma história e o todo harmônico servindo de guarda-chuva e abrigo a qualquer fantasia.

Ofereci vinho, coloquei um CD para tocar e logo estávamos dançando – eu e a desconhecida de olhar fixo – sob a mirada benevolente da outra desconhecida. Quando se acerta em música e movimento, a dança é um encontro diabólico de todas as configurações. Aos poucos rodopios fomos nos dançando para meu quarto, enquanto a outra mulher deitava-se no sofá da sala, na companhia de uma taça de vinho e metade de uma garrafa de Malbec.

Não me recordo exatamente dos detalhes do que houve no meu quarto. Mas sei que foi um encontro entre passado e futuro, com o presente bem ali, servindo de ponte concreta entre um e outro. Minha memória também resgata a leveza de minha parceira, seus olhos e sua nudez miúda, mas aconchegante. Resgata também um desmaio ao fim. E a luz do sol que me fez acordar esfregando os olhos.

Levantei-me e procurei pela casa. Haviam saído não sei a que horas. Fui à cozinha em busca de café e, sobre a pequena mesa encontrei um copo de suco de laranja coberto com um pires, tendo ao lado uma maçã partida. À frente do frugal café-da-manhã havia um bilhete: “Obrigada, Beija-flor. Te deixo um beijo. Borboleta.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário