Ontem, fazendo a roleta na TV, vi o trecho de um filmezinho em que o personagem dizia: “... cara... banda de jazz é a última pousada dos sem-talento... quando um cara não dá pra nada, vai tocar jazz... além do mais, esses músicos de jazz se divertem mais do que divertem a platéia...”
Achei engraçado. É verdade que músicos de jazz se divertem muito. Cada apresentação é uma novidade, com novos desafios e uma nova corda-bamba. Mas, é claro que discordo da acusação de falta de talento. O jazz exige muito dos seus intérpretes, tanto de conhecimento musical como de domínio do instrumento. Se o cara for ruim, ou até mais ou menos, está excluído. Porque todos os demais integrantes da banda estudaram e estudam harmonia e teoria musical; além passar pelo flagelo diário dos exercícios de escala, divisão e o que mais for para quebrar dedos, ferir lábios e daí por diante. E isto geralmente ganhando muito pouco...
Também achei engraçada a observação porque lidei e aprendi com músicos de jazz. Lembro-me de quando conheci o sax-alto Gary Bartz no “Twins” – um bar de comunidade com música ao vivo. Mr. Bartz já era um músico consagrado, havia gravado com os mais notáveis, além de ter uma quantidade de álbuns solo nas costas. No entanto, estava ali, divertindo a moçada naquele pé meio sujo, onde volta e meia aparecia alguém pedindo “chicken wings” pra viagem... Ao final de um “set”, quando fomos apresentados por um produtor amigo, cumprimentei-o pelo tremendo suíngue; ao que ele, muito simpático e risonho, me respondeu algo como seria, em Português, “... se não fizer mexer os quadris, não é jazz...”.
Entendo que houve um tempo em que o jazz virou algo quase sagrado, com os brancos todos na platéia usando um “tuxedo” para ouvir os negros tocando com a atitude comedida dos músicos clássicos. Foi o caso, por exemplo, do “Modern Jazz Quartet”, cuja frieza educada serviu de parâmetro para muitos grupos da época. Mas nunca deixaram de existir os músicos, os cantores, os sapateadores, que exibiam a sua arte para jazzística divertir o público, ao mesmo tempo que sabiam que o que faziam era dificílimo de imitar, entre eles Charlie Parker e Dizzie Gillespie.
Na verdade, o jazz é muito rico. A partir mesmo do fato que exige improviso (a tal corda bamba). É preciso ser ignorante para imaginar sem talento um músico que consegue inventar, na hora, uma linha melódica superposta a uma outra, conhecida, usando a mesma harmonia (há mestres nisso, aliás, incomparáveis como o saxofonista Stan Getz ou o pianista Brad Meldhau). Aliás, a invenção sempre fez parte do jazz: os músicos se desafiam continuamente a “push the envelope” limite (veja-se, por exemplo, o “novo free” praticado pelo trio do pianista Hal Galper, ou as composições e os arranjos orquestrais de Maria Schneider).
Sobre esse caminhar na corda bamba da harmonia, há o texto do pianista John Mehegan, para quem “acordes de menos de uma sétima são insuficientes [isto mesmo, insuficientes] para jazz” [in “Jazz Improvisation 1 – Tonal and Rhythmic Principles]. Isto quer dizer que os acordes usados em jazz sempre se abrem para harmonias vizinhas ou mesmo acordes “outside” (fora da progressão “natural”), tornando quase infinitas as combinações e seqüências que a criatividade dos músicos de jazz pode utilizar [sobre os acordes de sétima, ver e ouvir uma excelente explanação, inclusive histórica, em http://en.wikipedia.org/wiki/Seventh_chord].
Ainda rebatendo a fala do personagem, recordo-me de uma entrevista do Sting, da época do lançamento de sua famosa “jazz band”, em que ele, defendendo sua identidade de roqueiro, diz, com desdém, que a diferença entre o rock e o jazz estava em que o rock “burned” (“botava pra quebrar”) desde o início do tema. Realmente, o trato melódico e harmônico do jazz se constrói através do binômio tensão e relaxamento – cuja base é a progressão harmônica através do ciclo das sétimas – que vai aumentando a energia potencial de uma seqüência de acordes até resolvê-la em energia cinética (imagine-se uma onda no mar que vai subindo, ganhando potência e que, no ponto mais alto que consegue atingir, quebra e desliza até a areia). Isto ocorre na conhecida construção harmônica do “blues”, em que os doze compassos de uma canção culminam com o compasso da sétima dominante que é resolvido no compasso do acorde fundamental (ufa!). Essa audível compressão, que se realiza em “deliverance”, é não só harmônica mas também rítmica, sugerindo os ciclos do amor e da vida, de espera e realização. Não é por outra que, atentando para o equívoco de anos atrás, Sting compôs “Seven Days” que, com o tratamento rítmico desconcertante de Vinnie Colaiuta, é um exemplo de “tensão-e-relaxamento” [ver em http://www.youtube.com/watch?v=920BnH5bRJk].
[10jun10]
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