terça-feira, 1 de junho de 2010

O Código Moral do Candomblé

Sou um praticante do Candomblé. Minha experiência religiosa, entretanto, começou na Igreja Católica: freqüentei colégios católicos e cheguei a ser coroinha em três igrejas. Num daqueles colégios, fui apresentado à idéia de pecado. Minha relação com Deus era nutrida no medo; não no amor.

Na adolescência, por revolta, abandonei a Igreja Católica e declarei-me ateu. Fiz incursões racionais pelo panteísmo e condenei ou apoiei as religiões, em geral, em face de sua função social mal, ou bem, sucedida. Assim, mantive vivo e atualizado meu conhecimento sobre as organizações religiosas, seus rituais e mandamentos.

Já na maturidade encontrei minha espiritualidade. Esta descoberta ocorreu através da música e de um encontro casual. Da música, quando deixei de ser instrumentista para “fazer música”; do encontro casual quando fui convidado para assistir à festa de Ogun em uma casa de Umbanda. Poucas vezes me senti tão feliz como naquela noite em que fui à festa e a Mãe-de-Santo destinou-me a um dos atabaques.

Juntando minha epifania espiritual à prática de rituais fascinantes, acaba que fiquei adepto da Umbanda, fui “oborizado” (no caso, pode-se dizer “batizado”) e logo me tornei ogan da casa, freqüentando-a todos os sábados e batendo com fervor e alegria para os santos e demais entidades. Ça va sans dire que minha música teve sensível melhora e passou a dar-me um novo e melhor prazer.

Sucede que, ao fim de algum tempo, vi que meu destino não era ali. A Umbanda mistura o culto aos orixás com a disciplina espírita de Alan Kardec. As entidades que estão comigo apreciam o silêncio, a sutileza, a noite e a mata; minha racionalidade rejeita a existência do pecado e do Mal. Isso me fazia sentir fora de lugar e, por levantar um excesso de questões de base, fui sendo marginalizado.

Acabei visitando um barracão de Candomblé da Nação Ketu. E aí senti-me em casa. Fui novamente “oborizado” e, finalmente, “feito” (iniciado). “Yawô”, dei minhas obrigações de ano e três anos e, finalmente, ganhei a maioridade com a obrigação que tornou-me “ebomy”. Durante este tempo observei os complexos rituais da casa; pedi ajuda, conselho e explicação. Por outro lado, curioso, bebi em todos os livros que achei. Todavia, por mais que tenha me instruído sobre o Candomblé, tenho a convicção de que falta muito a aprender. Sempre através da mão gentil do meu babalorixá, dos mais antigos e de meus irmãos de santo; e seguindo meu coração.

A leitura sobre Candomblé é pautada por certo labor etnográfico e a descrição de ritos que compõem a vida de uma casa-de-santo. Dá-se prioridade às origens da religião africana e seu estabelecimento aqui e acolá, fruto do tráfico de escravos negros que grassou, no Brasil, do período Colonial até o século XIX. Descreve-se a cultura e a origem geográfica das diversas nações (Ketu, Angola, Jeje e outras). Fala-se dos orixás, suas características e seus “itans” (lendas). Foca-se nas vestimentas, no calendário, nas comidas, nas quizilas, nas ervas, nas saudações. Informa-se sobre o calendário das festas de santo e seu significado. Mas pouco ou nada se fala sobre os princípios éticos ou a filosofia do Candomblé. O público leitor, por outro lado, dá preferência aos fenômenos do oculto e deseja saber mais sobre esta coisa interessante que é a macumba.

O que me levou a uma reflexão sobre a ética e a filosofia do Candomblé foi a palavra dos mais antigos e o exemplo de meus irmãos de santo. E foi, definitivamente, uma necessidade de imaginar um sentido, uma idéia, sobre minha preferência pelo Candomblé.

Não levou muito tempo e forjei três princípios que considero básicos e que determinam minha escolha racional pelo Candomblé – que confirmam e reafirmam o sentimento que me preenche quando pratico o culto aos orixás. São eles:

Cuida do teu orixá.

Nenhum orixá é mais importante que o outro.

Todos têm um orixá. Portanto, entende e respeita teu próximo.

Cuida do Teu Orixá – Significa “cuida de ti mesmo”. Teu orixá é tua projeção divina, tua identidade mais sublime. É nele que encontras a tua verdade. E a tua verdade é teu guia. Quem tem os pés plantados na sua verdade, está em equilíbrio e harmonia com o cosmos, escolhe o certo e colhe o sucesso. De outra parte, nada é pior que a experiência de ter teu orixá virado de costas para ti.

Nenhum Orixá é Mais Importante que o Outro – O Candomblé ensina que cada orixá depende do outro e que não há orixá superior aos demais. Uns constituem energias complementares, que se reforçam; outros, energias antagônicas, que se equilibram. Ao peso inercial de Oxalá se opõe a força motriz de Exu; a argúcia de Oxosse completa a força unidirecional de Ogun. Pensar no panteão dos orixás é aprender que a vida em comunidade deve ser orgânica; é experimentar que todos dependem de todos, cada qual com seu valor, cada um com sua função.

Respeita Teu Próximo – Se todos somos sagrados, se todos somos filhos dessas divindades poderosas e diversas – os orixás – segue-se naturalmente que devemos respeitar a cada um e a todos com os quais convivemos. E o que é este respeito? Este respeito é o reconhecimento da força de cada qual, de suas qualidades e da valência que cada um tem, combinando-se com este e aquele para dar peso à força do grupo.

Como se vê, este é um código moral que encontra na prática – e na projeção da vida sagrada do dia-a-dia – o seu fundamento. Todos os demais preceitos, como aquele que diz que “não matarás”, incluem-se nestes três. E, ao verificar este padrão estritamente ético e tão familiar, aquieta-se o coração ocidental. Aqui só não tem lugar o demônio, porque não temos necessidade dele.


Um comentário:

  1. O preconceito esta na cabeça de cada um de nós, pois tudo que é desconhecido do homem... nós fará mal de alguma forma...
    Muito bom o seu texto

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