Estamos em janeiro de 1938. Ari sobe o Pelourinho devagar, tomando fôlego, até que chega à calçada defronte ao Cruzeiro. Promessa é promessa, e este ano, mais que nunca, Ari precisa ficar bem com o santo.
Desde que as malditas espinhas começaram a aparecer, Ari prometera fazer um samba para o Senhor do Bonfim a cada ano. A Bahia, seus ritmos, perfumes, comidas e, sem dúvida, o requebro das mulatas inzoneiras, de muito haviam conquistado o afeto do compositor. Ari entendia que o Brasil sinfônico pulsava vivo e renovado no coração de Salvador. Amor maior, só por seu querido Flamengo, que viria a ser campeão no ano seguinte, com direito a locução histórica na Rádio Tupy.
Naquele verão, nem mesmo o terno de linho branco e o chapéu panamá lhe davam refrigério contra o calor de matar. Assim que tocou a pedra da escultura, Ari começou a descer a ladeira, em direção á Baixa. A meio do caminho, buscou a sombra de um bar e, mesmo sem ver a quem pedia, apontou para o reclame de cerveja. Chegou-lhe a garrafa de casco escuro e o copo liso quando os olhos já se acostumavam à penumbra. E lá estava ela, a musa.
Morena novinha e magrinha, a menina estava vestida na costumeira roupa de ração, com uma blusinha marota a lhe esconder os bicos insolentes. Sorriu, e depois riu, ao dar-se conta do olhar estagnado de Ari ali em frente, que nem encher o copo havia enchido. Pediu licença e começou a servir a cerveja bem devagarzinho, para não levantar muita espuma.
Ari começou uma conversa boba, como se fosse um parnasiano sassaricando à porta da Colombo. Nada bom. Aliás, de bom, só o riso da morena que, anos depois, ouvindo a história, Caymmi iria chamar de Marina.
Mas a verdade é que a Bahia é realmente surpreendente. Um desejo, e lá se faz o encontro entre o Anjo da Guarda e o dendê. E assim foi que, vendo nos olhos anteolhados a vontade de Ari, a morena tomou-o pela mão, encontrou um ponto de luz, desceu o decote, e mostrou-lhe os pequenos seios de alcaçuz. Ari logo acordou e começou a beijá-los, fazendo cócegas com o bigodinho na delicada pele da menina. Mais que depressa, assim como o desceu, a morena subiu o decote e espantou Ari para a rua, mesmo sem bicar a cerveja.
Aos tropeços Ari chega ao hotelzinho. Sobe as escadas gemendo de calor. Vai ao banheiro do corredor, urina e lava o rosto. E, decidido, fecha-se no quarto, pendura o paletó e desce os supensórios. Sobre a mesa estão o lápis e o papel onde anotara os primeiros compassos do samba deste ano. Ouvindo mentalmente a orquestra, ele escreve, após a introdução, “Na Baixa do Sapateiro, encontrei um dia...”.
[28out09]
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