sexta-feira, 4 de junho de 2010

A Insustentável Leveza do Ser -- Um Episódio


Semana passada fui ao aniversário de minha afilhada Julia. Com um ramo de flores e um embrulhinho na mão, bati à porta da casa de Marta, minha comadre.

“Olá, Perov! Que surpresa!”, atendeu-me Marta, “Ora, querida... o que é isso? Acha que esqueceria o aniversário de Julia? A final, fui convidado...”, respondi, sorrindo, entrando e trocando um par de beijos e um abraço. Marta, de braço dado comigo, foi levando-me para onde estava Julia, perguntando-me “E então? Como andam as histórias de Titia?”... “Ah, Marta...”, respondi, “...Titia não quer nada comigo...”, e já chegávamos à aniversariante, que entretinha uma rodinha de amigos.

“Dindo! Que bom que você veio!”. E Julia pulou no meu pescoço. Dei-lhe um abraço apertado e, ao nos separarmos, apresentei-lhe o ramo de flores e o embrulhinho. “Que lindas, Dindo! No duro... não precisava... e olha só.... tem presentinho também!”... “Exato!”, respondi satisfeito, “Para minha afilhada querida...”. Julia abriu rapidamente o presente e fez o ahhhh que eu esperava e deu-me um selinho. E todos à volta riram. Julia, então, apresentou-me à rodinha: “Este é João, este é Carlos, esta é Maria, e esta é uma grande fã sua, Joana... e este é meu dindo querido...”. Feitas as apresentações, pedi licença e saí em busca de outras pessoas conhecidas.

Logo notei que Joana, a tal “fã”, seguia ao meu lado, e dei-lhe atenção: “Então... quer dizer que tenho UMA fã...”. “É verdade...” ela respondeu-me, simpática, e continuou “... li o seu ‘Hermanita, My Love’ e achei muito bom, muito divertido e muito instrutivo”, disse a última palavra caprichando no sorriso. “Os seus livros são meio auto-biográficos, não?...”, perguntou-me. “É verdade...”, respondi, “... não creio que possa escrever algo sem ter algum pé na minha experiência vivida e sentida... mas, no caso, hermanita não é, na verdade, minha irmã... é uma homenagem a uma amiga, Peri, uma irmã de alma...”. “E Titia? Como anda?....”, “Bahhhh... ela não quer nada comigo...”, respondi pela enésima vez. “Ouvi dizer que você está reunindo as postagens do seu blog num livro de aventuras com Titia...”, seguiu, provocando-me. Nesta altura, já estávamos sentados num sofá, com nossos copos. E resolvi mudar de assunto: “Você me parece familiar...”. “É claro que sim!...”, respondeu-me, ... sou amiga de sua filha, estudamos juntas nos mesmos colégios e já estive na sua casa várias vezes... além do mais somos quase vizinhos de porta... incrível como só se lembrou agora!”. Penitenciei-me, dei explicações tolas apontando para minha vida agitada, minhas complicações, minhas fases alternadas, e até o casamento de Maria Eduarda, minha filha, entrou no balaio de desculpas. Joana sorriu, perdoando-me e, daí por diante a conversa seguiu seu próprio rumo.

Falamos sobre tudo: política, atualidades, literatura, música, o curso de designer de Joana e meus planos para uma peça de teatro usando música incidental, de Babatunde Olatunji a Mahler. Até que Julia e Marta vieram reclamar da monopolização e chamaram-me para dançar. Foi muito bom! Marta ainda tem o rosto mais lindo que conheci, os lábios que jamais necessitaram pintura e a mímica rica que me divertia tanto; e Julia (ah, Julia) é a sensualidade em pessoa, uma lolita que por vezes me envergonhava quando me seduzia e eu me dava conta de como a desejava.

Terminada a seção de dança, voltei para perto de Joana e seguimos conversando até que esgotamos os temas. E ali ficamos, no mesmo sofá, bebericando e calados, até que tomei a iniciativa e comecei a despedir-me. “Peraí que desço contigo...”, disse-me ela, “... você pode me dar uma carona, não é mesmo?”, pediu. “Perfeito...”, respondi, “... vamos andando?”. Nos despedimos de todos e, no final, ouvimos Julia recomendar, com voz fingida: ...veja lá o que vocês vão fazer, hein?...”.

Caminhamos sem pressa pela noite agradável (“gentil”, como diria minha ex-mulher), às vezes falando alguma coisa, às vezes entoando uma canção e às vezes mudos, desfrutando do prazer de andar lado a lado. Até que chegamos ao meu prédio. E antes que eu falasse qualquer coisa, Joana me disse “É aqui, não?”. Sem pensar, respondi “É sim. Quer subir?”. Joana sorriu e encaminhou-se para a portaria.

Ao entrarmos em casa, e ao observar como Joana se movimentava pela sala, refleti sobre a naturalidade com que havíamos nos portado. As conversas, os gestos, os sorrisos, toda a troca havia ocorrido num ritmo harmonioso de um jogo de frescobol de bolas perfeitas, “empurradas”. Feliz, ofereci algo para bebermos e fui à cozinha buscar duas taças e uma garrafa de Lona Rose Brut que estava pronta para ser aberta.

Voltando à sala, não encontrei Joana. Procurei e fui dar com ela no quarto de Maria Eduarda, minha filha. Joana, sentada na cama, lia um livro de Shel Silverstein que eu havia dado à minha filha anos trás – “The Giving Tree”. Joana seguiu na leitura até terminá-la. Quando fechou o livro, vi que estava emocionada, olhando-me com olhos molhados. Tirei o livro de suas mãos, abracei seus ombros, esperei e depois servi o espumante.

A bebida levou para longe a pequena nuvem que pousara por instantes nos olhos de Joana. Fomos para a sala e, sentados no sofá, deixei que ela recostasse a cabeça no meu peito. Bebemos mais um pouco e Joana levantou o queixo na direção do meu rosto. Foi um beijo simples assim. Logo depois estávamos os dois nos amando, encaixados como se nunca tivéssemos deixado de ser siameses. Sem pressa, nos comemos, num prolongamento do ritmo que levamos toda a noite. Nos exibimos, fodemos no claro e no escuro, ouvimos nossas vozes e gemidos e pedidos, trocamos de alma e sentimos nossos cheiros e boca-a-boca gozamos tudo o que podíamos e caímos no sono dos justos ainda um dentro do outro.

Acordei cedo, como sempre. Do meu lado, lá estava, bela como nunca, a amiga de minha filha, que também me emocionava. Levantei-me cuidadosamente e fui ao banheiro. Olhei-me no espelho e, feliz, notei que havia rejuvenescido uns dez, vinte anos! Ah, Deus meu, nem nos meus melhores tempos me senti tão vivo e desperto, tão pronto para o novo dia!

Esperei que Joana começasse a despertar. Beijei-a, enternecido. Fui à cozinha e preparei um café forte. Trouxe o café, um par de torradas, manteiga e mel, e suco de laranja numa bandeja. Tomamos café, nus, em cima da cama desarrumada e ainda perfumada pelos cheiros da noite anterior. A sensação de sermos deuses foi partilhada e, diante desta constatação, sorrimos, poderosos. Fiquei excitado, uma ereção tamanha, e demos uma rapidinha, antes que Joana fosse tomar um banho e me deixasse ali, deitado e contente, contemplando a pintura do teto.

Tive o prazer de observar Joana vestir-se, cuidadosamente, peça por peça. Ao final do espetáculo, pulei da cama e comecei a vestir-me muito rapidamente. “Vou te levar...”, eu disse. “Por favor, não é preciso... sério”, respondeu-me,e Joana com a mão em meu ombro. Percebi a despedida: “Olhe... você sabe... foi uma noite maravilhosa... mas foi só uma noite e...”. Colei dois dedos nos lábios de Joana, calando-a e escondendo minha tristeza: “Eu sei...”.

Levei-a à porta. Beijei-a uma vez mais. Os lábios dela molhados, mas agora fechados. No momento de partir tive um impulso: “Peraí!”. E fui buscar algo para dar a Joana. Voltei e entreguei-lhe o livro do Silverstein. Ela nada me disse e seu olhar era compreensivo e grato. “Bye”, disse e foi-se.

Corri para a janela da sala, esperei, e vi Joana afastando-se do prédio, caminhando no mesmo passo da noite anterior. Ela não se virou para um derradeiro adeus; mas mesmo assim acenei. E fiquei olhando minha vida passar lá embaixo.

[09ago09]

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