O interesse geral pelo Candomblé tem-se revelado muito mais uma curiosidade pelo oculto, pelos rituais e pelos fenômenos para-normais do que um desejo de conhecer os conceitos éticos, a teologia e a prática dos mandamentos desta religião.
Até a literatura acadêmica, ou mesmo mais “especializada”, procura satisfazer a curiosidade do grande público, dando pouca ou nenhuma importância ao conteúdo moral do Candomblé.
Reconheça-se que há estudos sociológicos e antropológicos bastante sérios sobre a parte exterior da religião, como aqueles que focam na estrutura e na descendência de uma casa. Igualmente, há uma preocupação em descrever as origens africanas, em demarcar os grupos sociais e as etnias. Tais estudos também incluem a descrição dos Orixás e o registro de relatos e lendas que constituem a “sabedoria” daqueles grupos.
Não ocorre, entretanto, a pesquisa e a conceituação aprofundadas sobre os mandamentos morais que decorrem da crença nos Orixás. Nem muito menos uma referência cruzada a outras culturas, de forma a propiciar uma leitura mais clara dos preceitos do Candomblé. E isto é espantoso, uma vez que a serventia do lado externo da cultura – a cultura chamada “material” – é basicamente a de validar e de expressar o lado subjetivo da cultura, sem que se negue a necessária relação dialética entre estes dois lados. Aliás, fincado nessa relação, vejo a enorme importância prática do lado subjetivo.
Depois que comecei a seguir os mandamentos do Candomblé, a praticá-lo e, principalmente, a entendê-lo, muitas reações e atitudes de pessoas com as quais convivo, e daquelas outras que são públicas, passaram a fazer maior sentido. E eu comecei a preparar-me melhor para a convivência.
Fora do que é ritualisticamente permitido, obrigatório ou proibido, os mandamentos básicos do Candomblé são apenas dois: cuida do seu Orixá; e respeita os outros. Cuidar do seu Orixá significa cuidar de si mesmo; respeitar os outros decorre de que os outros também são filhos de Orixás e de que não há Orixá mais proeminente que outro [ver: "O Código Moral do Candomblé", também neste blog]. Esta última parte deste mandamento é sumamente importante na prática.
Conforme nos ensinam os itans, os Orixás são interdependentes. Nenhum deles possui a força, a energia e o domínio que se sobreponha à força, à energia e ao domínio dos demais. Na verdade, as relações entre os Orixás são de atração ou de oposição. Há alianças umbilicais e rejeições históricas. Ao ouvir-se relato sobre os Orixás “vermelhos” e “brancos”, vê-se claramente a antinomia entre Eros e Tanatos, entre o peso inercial e o movimento dinâmico deste e daquele Orixá. Na verdade, observa-se que, no panteão africano, as energias devem se compor, com o mínimo de perda das suas características e direções. Isso se dá através da multiplicidade de “personalidade” dos Orixás e das “famílias” que eles compõem. Ogum anda junto com Oxósse e Exu; Exu é incompatível com Oxalá; Oxalá é companheiro de Iroko; Iroko significa a mudança repentina, diferente de Oxumarê, que rege os ciclos da vida; e assim vamos...
Se tomamos que temos a mesma personalidade de nosso Orixá, segue-se que teremos mais chances de manter relações positivas com essa ou aquela pessoa, filha de um Orixá que acompanha o nosso. Da mesma forma, devemos entender que outra pessoa, que guarda referência direta com um Orixá antagônico ao nosso Orixá, deverá ser tratada à distancia e com cuidado. Obviamente, esta é uma redução simplista da extrema complexidade que rege a personalidade dos Orixás e dos homens. Na verdade, as diferenças ou similaridades são muito mais sutis, embora discerníveis. E constituem um notável instrumento de convivência, produzindo sinergias e evitando conflitos.
O entendimento das forças dos Orixás determina a qual deles pedimos socorro, proteção, inspiração. E para quem devemos cantar, dançar e agradecer. Os gregos, os romanos, por exemplo, cultuavam divindades de forças (domínios, energias ou personalidades) diferentes. Não pediriam a Marte (deus da guerra frontal e sanguinária) a solução negociada para um conflito (domínio de Minerva). Veja-se como seria de grande valor estabelecer uma associação (um caminho cruzado) entre os Orixás, os deuses do panteão greco-romano, as sephira da Cabala e até os arquétipos representados pelos arcanos maiores do tarot...
[10jun10]
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